Yoga não é uma ginástica

Cristiano Bezerra em ashtavakrasana na sala de Yoga do Ar+Zen. Foto por Marília Romano em 2013.
Pelo fato de existirem muitas academias de Hatha Yoga – a linha do Yoga que lida com o corpo físico -, pensa-se que o Yoga seja uma modalidade esportiva com sabor oriental. Isso é uma grande distorção, favorecida pelo fato de a maioria das academias – que deveriam chamar-se escolas – praticarem apenas asanas (posturas), em vez do Hatha Yoga completo, que compreende também kriyas, bandhas e asanas, de que falaremos a seguir.
O Hatha Yoga trata, basicamente, da circulação da energia vital (prana) em nosso corpo. Sua finalidade é limpar e desimpedir os “canais” sutis de circulação dessa energia (nadis), de modo a facilitar a comunicação entre a mente e o corpo, tornando-o um veículo adequado às energias mentais mais delicadas, abstratas e espirituais.
Paralelamente, o Hatha Yoga procura favorecer o bom funcionamento orgânico, para que o corpo goze de um bom estado de saúde e conserve a vitalidade por mais tempo. É por isso que, na Índia, a parte do Hatha Yoga considerada mais importante não são os asanas, mas os kriyas, que são técnicas de purificação e limpeza dos órgãos internos, principalmente daqueles que compõem o sistema de eliminação de toxinas, impurezas e resíduos de nosso corpo. A prática dos kriyas, pelo Hatha Yoga, não deve ser confundida com o Kriya Yoga, que trata da purificação da mente.
A partir de uma determinada idade, passamos a acumular mais impurezas do que conseguimos eliminar. Elas deixam o corpo intoxicado e a mente entorpecida para a percepção dos estados sutis, dificultando a prática da meditação. Essa também é uma das causas do desgaste orgânico, envelhecimento e morte.
O estado de pureza do corpo depende do que ingerimos: ar, água, alimentos, bebidas, remédios e substâncias químicas não naturais, e da maneira pela qual processamos e eliminamos os resíduos: através da respiração, pela pele, fígado, rins e intestinos. Daí a importância dos hábitos alimentares e respiratórios e dos métodos curativos que empregamos, bem como da prática dos kriyas, técnicas de limpeza das vias respiratórias, do estômago, dos intestinos, etc. A prática de asanas sem a mudança dos hábitos alimentares e sem a prática simultânea de kriyás não pode ser considerada uma prática completa de Hatha Yoga, embora, mesmo assim, traga benefícios.
Asanas são posições estáticas que atuam sobre a circulação da energia vital, estimulando áreas específicas do corpo, principalmente órgãos e glândulas. Seu objetivo é o bom funcionamento orgânico dos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, nervoso, reprodutor e eliminador de resíduos. Promove a flexibilidade das articulações e o alongamento muscular, proporcionando uma boa postura da coluna vertebral, importante para a livre circulação do prana, a energia sutil.
As nadis, que são os canais por onde circula o prana, têm uma afinidade com as células nervosas que, de todas as células do corpo, são aquelas naturalmente equipadas para captá-lo e servir-lhe de suporte físico. Daí a importância da coluna e da medula espinhal, suporte das nadis principais: idá, o circuito negativo, receptivo, pingala, o circuito ativante, positivo, e sushumna, a nadi central, que representa o equilíbrio entre os opostos e o psico-físico, a perfeita integração da consciência e da fisiologia. A prática dos asanas mobiliza os músculos, mas seu objetivo não é o desempenho muscular.
Bandhas são compressões profundas que atuam como massagem interna em órgãos e glândulas, mas cujo verdadeiro papel é o de bloquear a passagem da energia, de modo que esta se acumule em determinados centros, com o objetivo de estimulá-los, ou fazer com que a energia se redirecione, passando por circuitos diferentes dos habituais.
O Yoga, com certeza, não é uma espécie de ginástica. É um sistema concebido para desenvolver a consciência do homem em todos os seus níveis.
Esses níveis, em número de sete, são os seguintes:
- físico, ou corporal
- instintivo, vital, energético
- emocional
- mental subconsciente: chitta
- mental cotidiano: manas, ahamkara
- mental superior intuitivo/discriminativo: buddhi
- espiritual: Atman
Chitta é a memória. Constitui o arquivo de nossas memórias e impressões passadas, inclusive de vidas anteriores. Em sua grande maioria, essas impressões permanecem subconscientes, mas nem por isso deixam de influenciar o funcionamento de manas.
Manas é a unidade que processa informações sensoriais, as quais muitas vezes evocam antigas impressões do passado. É a parte da mente que recolhe as impressões sensoriais e organiza as respostas motoras convenientes. Seu funcionamento pode ser consciente, mas atua grande parte do tempo de forma quase automática.
Ahamkara é a consciência do ego. Quando as percepções de manas são apresentadas ao ahamkara, é essa função da mente que reconhece que “isso está ocorrendo comigo; sou eu que vejo; sou eu o agente da ação ou aquele que sofre os efeitos da ação”. Ahamkara confere um sentido de singularidade aos fatos em função da identidade pessoal. Também é a origem da separatividade.
Buddhi é a função que avalia e decide o curso da ação. No caso dos animais, essa decisão é automatizada e deflagrada pelos impulsos instintivos e emocionais ligados à circunstância identificada pelas impressões sensoriais. Mas, no caso da mente humana, essa decisão envolve o livre arbítrio. A atuação de buddhi envolve a discriminação sobre os valores abstratos envolvidos nos acontecimentos. Envolve uma delicada interligação do uso dos poderes superiores da mente: a razão e a intuição espiritual. Envolve a compreensão do que é certo e errado, do que é bem e do que é mal.
Buddhi, como vimos, é a capacidade discriminativa, habilitada a realizar julgamentos de valor e destinada a tornar-se o veículo de uma sabedoria superior. É através da utilização de buddhi que desenvolvemos viveka, o discernimento. No entanto, essa sabedoria superior que é viveka, essa joia sublime da consciência, existe apenas como uma potencialidade a ser desenvolvida na maioria das pessoas.
Atman é o núcleo espiritual do ser, cuja característica é a consciência de Si Mesmo e da Unidade do Todo. Em Atman não há separatividade. Os hinduístas cumprimentam-se dizendo “namaste”, que significa “Deus em mim saúda Deus em ti”. Jesus declarou explicitamente a união d’Ele com o Pai quando disse: “Eu e o Pai somos um” (Mt, 10:30), e a possibilidade da nossa união com Ele quando declarou: “Quem está em Mim, e Eu nele, esse dá muito fruto” (Jo, 15:57) e “Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim quem de Mim se alimenta, também viverá por mim” (Jo, 6:57).
Quando não temos uma visão intuitiva da experiência de união ao nível espiritual, essas afirmações soam absurdas, e os judeus enfureceram-se como nunca quando Jesus as fez. Hoje não temos dificuldade em aceitar a união entre Jesus e o Pai, mas como é difícil acreditar que também nós tenhamos sido convidados a partilhar dessa unidade que, embora impossível ao nível da personalidade, representa a meta suprema da vida espiritual.
O corpo físico alimenta-se de matéria orgânica, a alma alimenta-se de energia sutil modelada sob a forma de emoções, sentimentos e pensamentos, e o espírito alimenta-se da presença divina vivenciada no único lugar onde isso é possível: nele mesmo.
Leia na sequência:
O que o Yoga não é
Yoga não é uma ginástica
Yoga não é relaxamento por sugestão
Yoga não é religião
Yoga não é mágica

capa do livro Yoga Vidya, a Sabedoria do Yoga – Conceitos Fundamentais, de Maria Alice Figueiredo
- Texto extraído das páginas 28 a 32 do capítulo 1 do livro Yoga Vidya, a Sabedoria do Yoga – Conceitos Fundamentais (1997), de Maria Alice Figueiredo, e digitado por Cristiano Bezerra em 18 de janeiro de 2003 [↩]
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