Roviralta Borrel e a Bhagavad Gita
Teósofo, médico, sociólogo e mestre de fitologia, o espanhol José Roviralta Borrel (1856-1926) foi um veterano dos estudos esotéricos, um dos cabeças do movimento teosófico, tendo sido, juntamente com Xifre e Montolin, o fundador da Sociedade Teosófica da Espanha, no ano de 1889.
Profundo conhecedor da língua alemã, traduziu em prosa, para o seu idioma, o Fausto, de Goethe, considerado até hoje como um trabalho de grande envergadura e a melhor tradução que existe para o castelhano.
A identificação da estética de Borrel com a sabedoria transcendente do Fausto deve-se ao fato de essa obra maravilhosa simbolizar o espírito humano, inquieto e perquiridor, ávido por conhecer a Verdade Suprema. Assim, o ideal literário de Borrel, condicionando o interesse da pesquisa esotérica, encontrou em Goethe o legítimo suporte de seus pendores espiritualistas. Na realidade, Goethe, segundo Jean Boyer (La Pensée de Goethe), teve na mocidade sua iniciação na Cabala, na Magia e na Alquimia. Em 1830 foi celebrado o seu cinquentenário maçônico, constando também que em 1783 se filiara à Ordem Rosa Cruz.
As afinidades subjetivas, portanto, entre o escritor espanhol e o grande poeta alemão, eram confinantes, apesar do tempo que os separava, acentuando-se que em Borrel tornaria mais fértil a produção ocultista. De fato, este colaborou, por dois anos, na revista Estudios Teosóficos, passando em seguida a dedicar-se às funções de Presidente da Rama Barcelona de la Sociedad Teosófica e às traduções de The Theosophical Glossary, de Blavatsky, bem como de algumas obras de Shakespeare.
A maior consagração de Borrel, não há dúvida, foi e é sua versão espanhola da célebre Bhagavad Gita, publicada em Madrid em 1910. Como se sabe, essa obra – uma das seções didáticas incluídas no Mahabharata, o prodigioso poema épico da literatura hindu – tem sido traduzida para todas as línguas do mundo e as da própria Índia. O Mahatma Gandhi também nos legou bela tradução do referido poema, afastando-se do texto mas conservando-lhe o espírito, visto haver procurado adaptá-lo aos cânones e princípios da Verdade e da Não-violência que foram a sua norma de conduta.
As modificações feitas por Gandhi, quando o traduziu para o gujarati, sua língua materna, e depois para o inglês, foram por si justificadas: “Como o homem, o significado das grandes obras se transforma. Ao examinar a história da linguagem, vemos que o significado de palavras essenciais mudaram e se expandiram. Isso sucede com a Gita“.
Estrelas do céu, as palavras iluminam a via do pensamento que busca o Infinito. E o Mahatma preferiu as mais próximas, no propósito de prestigiar seus nobres ideais. Borrel, contudo, teve o esmero de não escolher estrelas. Antes, tentou descobrir a luz das mais distantes. E a sua primeira tentativa nos deu uma tradução mais pura da Bhagavad Gita, tornando-a tão legítima quanto o original. Para isso, em todos os versículos do poema existem remissões para o rodapé, pelo que podemos asseverar que seu livro é o mais anotado dentre os que conhecemos. Suas estrofes são brilhantes, sem mancha, e nos revelam o valor fundamental dos ensinamentos morais, religiosos e da ação que não aceita o prêmio da renúncia.
Borrel teve o cuidado de examinar as mais abalizadas traduções de Bhagavad Gita, a fim de buscar a seiva que alimenta as florações de sua espiritualidade. Computou as de Max Muller, Franz Hartmann, William Judge, Lionel Barnett e a de John Davies; leu as conferências do barão Guilherme Humbolt, proferidas perante a Academia de Ciências de Berlim, em 30 de junho de 1825 e 15 de junho de 1826, expondo e comentando os ensinamentos do maravilhoso livro; e, na Introdução da obra, reproduziu os conceitos latinos sobre o poema, de Schlegel.
Na verdade, o simbolismo da Bhagavad Gita é uma corrente contínua de sugestões que tentam elevar o homem, a começar pelos primeiros versos, que descreve a batalha no campo de Kurukshetra, que representa a eterna luta entre o Bem e o Mal. Entretanto, a peleja entre Kauravas e Pandavas mostra a controvérsia da natureza do homem a experimentar diariamente, dentro de si mesmo, o conflito de forças antagônicas, ora elevando-o em direção à luz, ora arrastando-o às trevas. Graficamente, o jogo de xadrez, com suas peças brancas e negras, traduz o campo de Kurukshetra, onde o peão avança paulatinamente por transformar-se – ganhando a oitava casa – numa peça do valor mais alto, mas sujeito nos seus passos a duras investidas e combates. O jogo de xadrez, originário da Índia, onde é chamado Chaturanga, vem a ser, por isso mesmo, um passatempo iniciático ou a expressão voluptuária dos conceitos da Bhagavad Gita.
Desde seu simbolismo recreativo, que desce à arena da luta no Chaturanga, e que sobe todas as escalas dos Yogas a fim de atingir o Nirvana, a Bhagavad Gita – Canção do Senhor – é uma convocação constante para os primores do Espírito, motivo por que Ismael Quiles diz ser ela “um dos livros de cabeceira da Humanidade“.
Nada se sabe do Autor da obra, senão que se chamava Vyasadeva, um nome muito comum na literatura hindu. O poema está escrito em sânscrito. Começa com um diálogo entre Arjuna, o chefe do exército, e Krishna, que o auxilia na batalha. Arjuna passa em revista seus inimigos, mas sente que não os odeia e tem pesar em guerreá-los. Vacila e pergunta a Krishna: “como poderei combater contra Bhima e Drona, se, entre todos os homens, eles são os mais dignos de meu respeito? Prefiro mendigar meu pão pelo mundo, a ter que matá-los…”. Krishna contesta, fazendo Arjuna ver a futilidade da vida tanto quanto da morte, bem como a impossibilidade de matar o Espírito. E diz-lhe que, se não combater, será tido como covarde pelos inimigos e, se morrer, irá para o Céu. No curso da dissertação, Krishna instrui o guerreiro na doutrina do Yoga e na salvação mediante ações justas e abandono dos desejos, expondo-lhe os princípios fundamentais da reencarnação e da Libertação perfeita.
Alguns intérpretes da Bhagavad Gita encontram no poema ideias panteístas, em face do versículo que reza:
“Fixa tua mente em Mim,
penetra em Mim o teu entendimento,
porque, sem dúvida alguma, após a morte,
viverás em Mim nas alturas”.
O nobilíssimo Francisco Madero o refuta, alegando que “viverás em Mim nas alturas” não significa ser possível absorver-se no Ser Supremo e formar parte dele, mas apenas aproximar-se e identificar-se com os seus desígnios, porém conservando-se a própria personalidade assim como a imensa e muito respeitável distância que dele nos separa.
É evidente que a Bhagavad Gita se apoia no esquema metafísico do Samkhya, eminentemente dualista. Basta ler o Canto XIII, Estância 26:
“Todos os seres que vêm à existência,
sejam animados ou inanimados,
são produtos da matéria com o Espírito”.
Mário Roso de Luna, ao apreciar o tema, encontrou nele a razão de ser da natureza abstrata ou concreta, “pois – diz ele – o conceito de matéria e de Espírito são maneiras de expressar a realidade” (Conf. Teosóf. Am. do Sul, tomo I, pág. 75).
Em consequência, encontramos na Bhagavad Gita o livro da natureza que, nas dobras do Infinito e no coração do finito, abre suas páginas à luz do Alto, razão porque rendemos homenagem ao poeta Augusto dos Anjos:
“Quando o homem, resgatado da cegueira,
vir Deus num simples grão de argila errante,
terá nascido nesse mesmo instante a mineralogia derradeira…”
Quanto ao conteúdo, a mística perfuma cada estrofe da Bhagavad Gita; a sabedoria ilumina seus parágrafos; e a ética derrama no seu contexto as bênçãos da renúncia.
Louvamos todos quantos se entregaram ao nobre afã de veicular a Bhagavad Gita em seus idiomas nacionais, em terras distantes da que ele surgiu como o pólen que fecunda as flores da virtude. E, se recomendamos a tradução de Roviralta Borrel, é porque o grande esoterista espanhol procurou, como nenhum outro, a fonte pura dos étimos, no sentido de estruturar o mais possível a forma original do poema, com o que Borrel cumpriu o preceito do Canto XVII, Estância 15:
“A austeridade verbal consiste em palavras que não causem prejuízo,
que sejam verdadeiras, amáveis e úteis,
e também que se conformem com as Escrituras”.
Aí está, pois, um livro que alenta, instrui e redime.
Leia na sequência:
Roviralta Borrel e a Bhagavad Gita
A história da Bhagavad Gita
Arjuna Vishada Yoga – Bhagavad Gita, canto 1
Samkhya Yoga – Bhagavad Gita, canto 2
Karma Yoga – Bhagavad Gita, canto 3
Jñana Yoga – Bhagavad Gita, canto 4
Karma Sannyasa Yoga – Bhagavad Gita, canto 5
Atma Samyama Yoga – Bhagavad Gita, canto 6
Vijñana Yoga – Bhagavad Gita, canto 7
Akshara Parabrahman Yoga – Bhagavad Gita, canto 8
Rajavidya Rajaguya Yoga – Bhagavad Gita, canto 9
Vibhuti Vishtara Yoga – Bhagavad Gita, canto 10
Vishvarupa Darshana Yoga – Bhagavad Gita, canto 11
Bhakti Yoga – Bhagavad Gita, canto 12
Kshetra Kshetrajña Vibhaga Yoga – Bhagavad Gita, canto 13
Gunatraya Vibhaga Yoga – Bhagavad Gita, canto 14
Purushottama Prapti Yoga – Bhagavad Gita, canto 15
Daivasura Sampad Vibhaga Yoga – Bhagavad Gita, canto 16
Shraddha Traya Vibhaga Yoga – Bhagavad Gita, canto 17
Moksha Sannyasa Yoga – Bhagavad Gita, canto 18
Glossário sânscrito da Bhagavad Gita
- Texto extraído do livro contendo a tradução da Bhagavad Gita do sânscrito para o castelhano em 1910 por Roviralta Borrel (1856-1926), e deste para o português em 1973 por Eloísa Ferreira, publicado originalmente pela Editora Três, de São Paulo, na Biblioteca Planeta, Volume 7, e digitado por Cristiano Bezerra para este blog, Yoga Pleno, em 21 de dezembro de 2001. [↩]
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