O Yoga e o Ocidente
1)
Há pouco menos de um século o Ocidente adquiriu alguma noção do Yoga. Embora seja verdade que há mais de dois mil anos tenham chegado à Europa os mais variados tipos de narrativas maravilhosas provenientes da Índia fabulosa, com seus sábios e céticos onfálicos, contudo, só mediante os primeiros contatos com as Upanishads, trazidas ao Ocidente por Anquetil du Perron, teve início um verdadeiro conhecimento da filosofia hindu e da prática filosófica da Índia. Mas um conhecimento mais geral e mais aprofundado só foi possível graças ao trabalho de Max Muller, Oxford e aos Sacred Books of East, editados por ele. Esse conhecimento real, no entanto, restringiu-se inicialmente aos indólogos e filósofos. Mas o movimento teosófico, encadeado por Madame Blavatsky, não tardou em apoderar-se das tradições orientais e as colocou ao alcance do público.
Durante várias décadas o conhecimento do Yoga foi cultivado no Ocidente; de um lado, como ciência estritamente acadêmica, e, de outro, como algo que talvez possamos classificar de religião, conquanto não se tenha desenvolvido a ponto de tornar-se uma igreja organizada, apesar dos esforços de Annie Besant e do fundador do ramo antroposófico, Rudolf Steiner, que, por sua vez, deriva de Madame Blavatsky.
Dificilmente se pode comparar o caráter dessa evolução com aquilo que o Yoga significa para a Índia. Ou seja, no Ocidente, as doutrinas orientais encontraram uma situação espiritual peculiar que a Índia – pelo menos a Índia antiga – desconhecia, ou seja, a rigorosa separação entre ciência e religião existente, em maior ou menor grau, há trezentos anos, quando a doutrina do Yoga começou pouco a pouco a tornar-se conhecida no Ocidente. Essa separação, que é uma característica típica do Ocidente, começou com o Renascimento, no século XIV, época em que surgiu um interesse geral e apaixonado pela Antiguidade clássica, favorecido pela queda do Império Romano do Oriente, que sucumbiu às investidas do Islamismo. Pela primeira vez difundiu-se o conhecimento da língua e da cultura gregas no Ocidente. A essa irrupção da assim chamada filosofia pagã seguiu-se, imediatamente, o grande Cisma da Igreja Romana, ou seja, o Protestantismo, que em breve se alastrou por toda a Europa setentrional. Mas essa renovação do Cristianismo já não era capaz de exorcizar os espíritos libertados.
Começara a época das descobertas mundiais no sentido geográfico e científico do termo, enquanto o pensamento ia se emancipando de forma crescente das cadeias opressivas da tradição religiosa. As Igrejas continuaram a existir, mantidas pela necessidade estritamente religiosa do público, mas perderam a liderança no plano cultural. Enquanto a Igreja Romana continuou formando uma unidade, graças à sua inexcedível forma de organização, o Protestantismo se esfacelou em cerca de quatrocentas denominações diferentes. Isso revela, de um lado, a sua incapacidade intrínseca, mas também o seu dinamismo, a sua vitalidade religiosa, que o impele sempre para diante, para mais longe. No decorrer do século XIX houve uma paulatina formação sincrética e a importação maciça de sentimentos religiosos exóticos, como, por exemplo, a religião formada por Abdul Bahai, as seitas sufistas, a pregação de Ramakrishna, o Buddhismo etc. Muitos desses sistemas, como a Teosofia, por exemplo, incorporaram elementos cristãos. A imagem que daí resultou corresponde quase ao sincretismo helenístico dos séculos III e IV, que chegou também à Índia, pelo menos em seus resquícios(2).
Mas todos esses sistemas se situam na linha religiosa e recrutam a maior parte de seus adeptos no seio do Protestantismo. No fundo, trata-se nada mais do que de seitas protestantes. O Protestantismo concentrava seus golpes contra a autoridade da Igreja, abalando principalmente a fé nessa mesma Igreja enquanto transmissora e comunicadora da salvação divina. Isso fez com que coubesse ao indivíduo o ônus da autoridade e, consequentemente, uma responsabilidade religiosa que até então não tivera. O declínio da prática da confissão dos pecados e da absolvição agravou ainda mais o conflito moral interior do indivíduo, sobrecarregando-o de uma série de problemas que a Igreja outrora o poupara, na medida em que seus sacramentos, e em particular o sacrifício da missa, garantiam a salvação ao fiel, graças à realização da ação sagrada pelo ministério do sacerdote. Para tanto, o indivíduo devia contribuir apenas com a confissão pessoal dos pecados, com o arrependimento e a penitência. Com a eliminação da ação sagrada eficaz, passou a faltar a resposta de Deus ao propósito do indivíduo. São essas as lacunas que explicam o anseio e a busca de sistemas que prometessem essa resposta, ou seja, um gesto de complacência e aceitação por parte de outrem (superiores, diretores espirituais ou mesmo Deus).
A Ciência europeia não tomava na devida conta essas esperanças e expectativas. Mantinha-se distanciada e isolada das convicções e necessidades religiosas do grande público. Esse isolamento do espírito ocidental, inevitável do ponto de vista histórico, apoderou-se também da doutrina do Yoga, na medida em que foi acolhida no Ocidente, transformando-a, de um lado, em objeto de ciência, e, de outro, saudando-a como processo terapêutico. É verdade que não se pode negar a existência, no seio desse movimento, de toda uma série de tentativas no sentido de conciliar a Ciência com a convicção religiosa e a prática, como no caso da Christian Science, a Teosofia e a Antroposofia, das quais notadamente a última gosta de se apresentar com laivos de Ciência; por isso a Antroposofia, do mesmo modo que a Christian Science, invalida certos ambientes de cultura intelectual.
Como o Protestantismo não tem um caminho previamente traçado, qualquer sistema que lhe permita um desenvolvimento adequado é, por assim dizer, bem visto por ele. No fundo, deveria fazer tudo aquilo que a Igreja sempre fez como mediadora, só que agora não sabe como fazê-lo. Tendo levado a sério as próprias necessidades religiosas, também fez esforços inauditos para crer. Mas a fé é um carisma, um dom da graça, e não um método. E é justamente um método que faz falta aos Protestantes, a ponto de muitos deles terem se interessado seriamente pelos exercícios espirituais de Inácio de Loyola, rigorosamente católicos. Mas o que mais os perturba é a contradição entre a verdade religiosa e a verdade científica, o conflito entre a fé e o saber que, através do Protestantismo, afetou até mesmo o Catolicismo. Esse conflito existe única e exclusivamente por causa da cisão histórica operada no pensamento europeu. Se não houvesse, de um lado, um impulso psicológico inatural para crer, e do outro, uma fé, igualmente inatural, na Ciência, não haveria qualquer razão para esse conflito. Seria fácil, então, imaginar um estado em que o indivíduo simplesmente soubesse e ao mesmo tempo acreditasse naquilo que lhe parecesse provável por estas ou aquelas boas razões. A rigor não há, forçosamente, uma razão para o conflito entre essas duas coisas. Na verdade, ambas são necessárias, pois apenas o conhecimento, assim como apenas a fé, são sempre insuficientes para atender às necessidades religiosas do indivíduo.
Por isso, se se propuser algum método religioso como “científico”, pode-se estar certo de contar com o público no Ocidente. O Yoga satisfaz a essa expectativa. À parte o estímulo da novidade e o fascínio pela meia compreensão, o Yoga conquista muitos adeptos por boas razões: ele propõe não só um método tão amplamente procurado, como também uma filosofia de inaudita profundidade. Oferece a possibilidade de uma experiência controlável, satisfazendo com isso a necessidade científica de “fatos”; e, além disso, graças à sua amplitude e profundeza, à sua idade venerável, à sua doutrina e metodologia, que abarcam todos os domínios da vida, promete insuspeitadas possibilidades que os pregadores da doutrina raramente deixaram de sublinhar.
Silencio a importância que o Yoga tem na Índia, pois não me sinto autorizado a emitir um juízo a respeito de algo que não conheço por experiência própria. Mas posso dizer alguma coisa sobre aquilo que ele significa para o Ocidente. A ausência de métodos entre nós raia pela anarquia psíquica. Por isso, qualquer prática religiosa ou filosófica significa uma espécie de disciplinamento psicológico e, consequentemente, também um método de higiene mental. As inúmeras formas de proceder do Yoga, de natureza puramente corporal, significam também uma higiene fisiológica que, pelo fato de estar subordinada à ginástica costumeira ou aos exercícios de controle da respiração, é também de natureza filosófica, e não apenas mecânica e científica. De fato, nesses exercícios, ele liga o corpo à totalidade do espírito, coisa que se pode ver claramente nos exercícios de pranayama, onde o prana é ao mesmo tempo a respiração e a dinâmica universal do cosmos. Como a ação do indivíduo é ao mesmo tempo um acontecimento cósmico, o assenhoreamento do corpo (inervação) se associa ao assenhoreamento do espírito (da ideia universal), resultando daí uma totalidade viva que nenhuma técnica, por mais científica que seja, é capaz de produzir. Sem as representações do Yoga, seria inconcebível e também ineficaz a prática do Yoga. Ele trabalha com o corporal e o espiritual unidos um ao outro de maneira raramente superada.
No Oriente, onde surgiram essas ideias e essas práticas, e onde há quatro mil anos uma tradição ininterrupta criou todas as bases e os pressupostos espirituais necessários, o Yoga, como é fácil de imaginar, tornou-se a expressão mais adequada e a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma unidade que dificilmente se pode negar, gerando, assim, uma disposição psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que transcendem o plano da consciência. A mentalidade histórica da Índia não tem, a princípio, qualquer dificuldade em trabalhar analogicamente com um conceito como o de prana. Mas o Ocidente, com seu mau costume de querer crer, de um lado, e com a sua crítica de origem filosófica e científica, do outro, cai cegamente na armadilha da crença e engole conceitos e termos como prana, atman, chakra, samadhi etc. Mas a própria crítica científica já tropeça contra o conceito de prana e de Purusha. Por isso, a cisão operada no espírito ocidental torna impossível, de início, uma adequada realização das intenções do Yoga. Ou esse é um assunto estritamente religioso, ou um training, como a mnemotécnica, a ginástica respiratória, a eurritmia etc. Mas não se encontra o mínimo vestígio daquela unidade e dessa totalidade que é própria do Yoga. O hindu não consegue esquecer nem o corpo nem o espírito. O europeu, pelo contrário, esquece sempre um ou outro. Foi graças a essa capacidade que ele conquistou antecipadamente o mundo, isso não ocorrendo ao hindu. Este não somente conhece a sua natureza, como também sabe até onde ele próprio é essa natureza. O europeu, pelo contrário, tem uma ciência da natureza e sabe espantosamente muito pouco a respeito da natureza que está nele. Para o hindu é um benefício conhecer um método que o ajude a vencer o poder supremo da natureza, por dentro e por fora. Para o europeu é um veneno reprimir totalmente a natureza já mutilada e transformá-la em robô obediente.
Embora se afirme que o Yoga é capaz de mover montanhas, é difícil apresentar uma prova nesse sentido. O poder do Yoga se situa dentro dos limites admissíveis para seu meio ambiente. O europeu, pelo contrário, pode fazer montanhas saltarem pelos ares, e a guerra mundial nos deu um antegosto amargo de tudo o quanto ele é ainda capaz de fazer, quando seu intelecto alienado da natureza se liberta de todos os freios. Como europeu, não posso desejar que o homem adquira ainda um maior “controle” e poder sobre a natureza, tanto exterior como interiormente. Sim, devo confessar, para vergonha minha, que devo os meus melhores conhecimentos (e entre eles há alguns que são inteiramente bons) à circunstância de, por assim dizer, ter feito sempre o contrário do que nos dizem todas as regras do Yoga. Graças ao desenvolvimento histórico, o europeu se distanciou de suas raízes, e seu espírito terminou por cindir-se entre fé e saber, da mesma forma que qualquer excesso de natureza psicológica se dissolve nos pares opostos. O europeu precisa retornar, não à natureza, à maneira de Rousseau, mas à sua natureza. Sua missão consiste em redescobrir o homem natural. Em vez disso, porém, o que ele prefere são sistemas e métodos com os quais possa reprimir o homem natural que atravessa seu caminho, onde quer que esteja. Com toda certeza, ele fará mau uso do Yoga, pois sua disposição psíquica é totalmente diversa da do homem oriental. Sempre digo a quem posso: “Estude bem o Yoga. Você aprenderá um número infinito de coisas com ele, mas não o utilize, pois nós, europeus, não somos feitos para usar sem mais nem menos tais métodos. Um guru hindu poderá explicar-lhe tudo muito claramente e você poderá executar, depois, o que ele lhe tiver ensinado, mas saberá você quem está se utilizando do Yoga? Em outras palavras: saberá você quem é você mesmo e de que modo é constituído?”.
O poder da Ciência e da Técnica na Europa é tão grande e tão incontestável, que é quase uma pura perda de tempo procurar saber o que se pode fazer e o que já se inventou. Sentimo-nos tomados de pavor diante das imensas possibilidades do europeu. E aqui uma questão inteiramente diferente começa a se delinear: Quem emprega esse poder? Em mãos de quem se encontra essa capacidade de ação? O Estado é ainda por algum tempo um instrumento preventivo que aparentemente protege o cidadão contra a massa incalculável de venenos e de outros meios infernais de destruição; estes podem ser produzidos sempre a curtíssimo prazo e em toneladas. O poder tornou-se de tal modo perigoso, que é cada vez mais premente a questão, não tanto de saber o que ainda se pode fazer, mas de que modo deveria ser constituído o homem ao qual se confia o controle deste “poder”, ou de que maneira se poderia mudar a mentalidade do homem ocidental para que renunciasse a seu terrível poder. Seria infinitamente mais importante tirar-lhe a ilusão desse poder do que reforçá-lo na errônea convicção de que pode tudo quanto quer. O slogan “Querer é poder” custou a vida a milhões de pessoas.
O homem ocidental não necessita da superioridade sobre a natureza, tanto dentro como fora, pois dispõe de ambas as coisas de maneira perfeita e quase diabólica. O que ele, porém, não tem é o reconhecimento consciente de sua própria inferioridade em relação à natureza, tanto à sua volta como dentro de si. O que deveria aprender é que não é como ele quer que ele pode. Se não estiver consciente disso, destruirá a própria natureza. Desconhece sua própria alma que se rebela contra ele de maneira suicida.
Como tem o poder de transformar tudo em técnica, em princípio tudo quanto tem aparência de método é perigoso e está fadado ao insucesso. Porque o Yoga é também uma higiene, é útil ao homem como qualquer outro sistema. Mas, entendida no sentido mais profundo do termo, não é apenas isso. O que ele pretende – se não estou enganado – é desprender e libertar definitivamente a consciência de todas as amarras que a ligam ao objeto e ao sujeito. Como, porém, não se pode libertar o indivíduo daquilo de que ele não está consciente, o europeu deve primeiramente aprender a conhecer o sujeito, que no Ocidente é chamado de consciente. O método do Yoga está voltado exclusivamente para a consciência e para a vontade consciente. Um procedimento como esse só é promissor se o inconsciente não possuir qualquer potencial digno de nota, isto é, se não encerrar grande parte da personalidade. Se o empreende, então todos os esforços conscientes serão baldados e o produto dessa atitude de crispação é uma caricatura ou mesmo o oposto do que se esperaria como resultado natural.
Uma parte considerável e importante do inconsciente se acha expressa através da rica metafísica e do rico simbolismo do Oriente, reduzindo, com isso, o potencial desse mesmo inconsciente. Quando o yogi fala em prana, tem em mente muito mais do que a simples respiração. Na palavra prana ele ouve ainda o eco de toda a componente metafísica, e é como se realmente soubesse o que o prana significa também sob esse aspecto. Não o sabe pelo entendimento, mas pelo coração, pelo ventre e pelo sangue. O europeu, porém, aprende de cor e imita conceitos, e, por isso, não está em condições de exprimir sua realidade subjetiva através do conceito hindu. Para mim é quase fora de dúvida que o europeu, se pudesse ter as experiências que correspondem à sua índole, dificilmente escolheria justamente um conceito como o de prana para expressar essa experiência.
Originariamente, o Yoga era um processo natural de introversão que se operava com todas as suas variantes individuais possíveis. Tais introversões provocam estranhos processos internos que alteram a personalidade. Essas introversões foram-se organizando paulatinamente em métodos, no curso dos milênios, e isso das maneiras mais variadas possíveis. O próprio Yoga hindu conheceu um sem-número de formas estranhamente diversas. O motivo foi a diversidade original das experiências individuais. Com isso não queremos absolutamente dizer que qualquer um desses métodos se aplica à estrutura histórica específica do europeu. Pelo contrário, é provável que seu Yoga natural derive de modelos históricos que o Oriente desconhece. Na verdade, as duas tendências culturais que, no Ocidente, mais ocuparam-se praticamente com a alma, isto é, a medicina e a cura católica da alma, geraram métodos que poderemos muito bem comparar com o Yoga. Já mencionei os exercícios espirituais da Igreja Católica. Quanto à medicina, são precisamente alguns dos métodos psicoterapêuticos modernos os que mais se aproximam do Yoga. A psicanálise de Freud consiste em fazer com que a consciência do paciente remonte, de um lado, ao mundo interior das reminiscências infantis, e, de outro lado, aos desejos e impulsos recalcados pela consciência. Esse processo é um desenvolvimento lógico e consequente da prática da confissão. O seu intuito é provocar uma introversão, a fim de tornar conscientes as componentes inconscientes do sujeito.
Um método um pouco diferente é o chamado “treinamento autógeno”, proposto por J. H. Schultz(3), que adota de propósito o caminho do Yoga. Seu escopo principal é eliminar a atitude crispada de resistência da consciência e os recalques do inconsciente provocados por ela.
A minha metodologia se baseia, como a de Freud, na prática da confissão. Como ele, também levo em conta os sonhos, mas é na maneira de apreciar os sonhos que nossas concepções divergem. Para ele, o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da consciência, no qual estão reunidas todas as incompatibilidades. Para mim, o inconsciente é uma disposição psicológica coletiva de natureza criativa. Dessa divergência radical decorre também uma maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e seu método de interpretação. Freud procede de maneira essencialmente analítica e redutiva. Eu, porém, acrescento também um procedimento sintético que põe em relevo o caráter finalístico das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da personalidade. Esse ramo a pesquisa trouxe à luz importantes paralelos com o Yoga, especialmente com o Kundalini Yoga e com a simbólica tanto do Yoga tântrico do lamaísmo, quanto do Yoga taoísta da China. Essas formas de Yoga e seu rico simbolismo nos forneceram materiais comparativos preciosíssimos para a interpretação do inconsciente coletivo. Mas, em princípio, não aplico todos os métodos do Yoga, porque nada deve ser imposto ao inconsciente, no Ocidente. O mais das vezes, a consciência é de uma intensidade e de uma exiguidade convulsivas, e por isso não convém acentuá-las ainda mais. Devemos, pelo contrário, tanto quanto possível, ajudar o inconsciente a atingir a consciência, para arrancá-la de seu entorpecimento. Para esse fim, utilizo também uma espécie de método de imaginação ativa que consiste em um “training” especial de desligamento da consciência, para ajudar os conteúdos inconscientes a se expandirem.
Se procedo assim de forma tão acentuadamente crítica e negativa no confronto do Yoga, isso não significa de modo algum que eu não considere as aquisições espirituais do Oriente como o que de mais grandioso o espírito humano jamais criou. Espero que dessa minha exposição resulte com suficiente clareza que minha crítica se volta única e exclusivamente contra a aplicação do Yoga ao homem do Ocidente. A evolução espiritual do Ocidente seguiu caminhos totalmente diversos dos do Oriente, razão pela qual surgiram condições sumamente desfavoráveis para a aplicação do Yoga. A civilização ocidental tem pouco menos de dois mil anos de existência; ela deve primeiramente libertar-se de suas unilateralidades bárbaras. Para isso é preciso uma percepção e uma visão mais profundas da natureza do homem. Mas com a repressão e a dominação não se chega a conhecimento algum, e menos ainda com a imitação de métodos que surgiram de condições psicológicas totalmente diversas. Com o perpassar dos séculos, o Ocidente irá formando seu próprio Yoga, e isso se fará sobre a base criada pelo Cristianismo.
» por Carl Gustav Jung (1875-1961) (Há pouco menos de um século o Ocidente adquiriu alguma noção do Yoga. Embora seja verdade que há mais de dois mil anos tenham chegado à Europa os mais variados tipos de narrativas maravilhosas provenientes da Índia fabulosa, com seus sábios e céticos onfálicos, contudo, só mediante os primeiros contatos com as Upanishads, trazidas ao Ocidente por Anquetil du Perron, teve início um verdadeiro conhecimento da filosofia hindu e da prática filosófica da Índia. Mas um conhecimento mais geral e mais aprofundado só foi possível graças ao trabalho de Max Muller, Oxford e aos Sacred Books of East, editados por ele. Esse conhecimento real, no entanto, restringiu-se inicialmente aos indólogos e filósofos. Mas o movimento teosófico, encadeado por Madame Blavatsky, não tardou em apoderar-se das tradições orientais e as colocou ao alcance do público.
Durante várias décadas o conhecimento do Yoga foi cultivado no Ocidente; de um lado, como ciência estritamente acadêmica, e, de outro, como algo que talvez possamos classificar de religião, conquanto não se tenha desenvolvido a ponto de tornar-se uma igreja organizada, apesar dos esforços de Annie Besant e do fundador do ramo antroposófico, Rudolf Steiner, que, por sua vez, deriva de Madame Blavatsky.
Dificilmente se pode comparar o caráter dessa evolução com aquilo que o Yoga significa para a Índia. Ou seja, no Ocidente, as doutrinas orientais encontraram uma situação espiritual peculiar que a Índia – pelo menos a Índia antiga – desconhecia, ou seja, a rigorosa separação entre ciência e religião existente, em maior ou menor grau, há trezentos anos, quando a doutrina do Yoga começou pouco a pouco a tornar-se conhecida no Ocidente. Essa separação, que é uma característica típica do Ocidente, começou com o Renascimento, no século XIV, época em que surgiu um interesse geral e apaixonado pela Antiguidade clássica, favorecido pela queda do Império Romano do Oriente, que sucumbiu às investidas do Islamismo. Pela primeira vez difundiu-se o conhecimento da língua e da cultura gregas no Ocidente. A essa irrupção da assim chamada filosofia pagã seguiu-se, imediatamente, o grande Cisma da Igreja Romana, ou seja, o Protestantismo, que em breve se alastrou por toda a Europa setentrional. Mas essa renovação do Cristianismo já não era capaz de exorcizar os espíritos libertados.
Começara a época das descobertas mundiais no sentido geográfico e científico do termo, enquanto o pensamento ia se emancipando de forma crescente das cadeias opressivas da tradição religiosa. As Igrejas continuaram a existir, mantidas pela necessidade estritamente religiosa do público, mas perderam a liderança no plano cultural. Enquanto a Igreja Romana continuou formando uma unidade, graças à sua inexcedível forma de organização, o Protestantismo se esfacelou em cerca de quatrocentas denominações diferentes. Isso revela, de um lado, a sua incapacidade intrínseca, mas também o seu dinamismo, a sua vitalidade religiosa, que o impele sempre para diante, para mais longe. No decorrer do século XIX houve uma paulatina formação sincrética e a importação maciça de sentimentos religiosos exóticos, como, por exemplo, a religião formada por Abdul Bahai, as seitas sufistas, a pregação de Ramakrishna, o Buddhismo etc. Muitos desses sistemas, como a Teosofia, por exemplo, incorporaram elementos cristãos. A imagem que daí resultou corresponde quase ao sincretismo helenístico dos séculos III e IV, que chegou também à Índia, pelo menos em seus resquícios(2).
Mas todos esses sistemas se situam na linha religiosa e recrutam a maior parte de seus adeptos no seio do Protestantismo. No fundo, trata-se nada mais do que de seitas protestantes. O Protestantismo concentrava seus golpes contra a autoridade da Igreja, abalando principalmente a fé nessa mesma Igreja enquanto transmissora e comunicadora da salvação divina. Isso fez com que coubesse ao indivíduo o ônus da autoridade e, consequentemente, uma responsabilidade religiosa que até então não tivera. O declínio da prática da confissão dos pecados e da absolvição agravou ainda mais o conflito moral interior do indivíduo, sobrecarregando-o de uma série de problemas que a Igreja outrora o poupara, na medida em que seus sacramentos, e em particular o sacrifício da missa, garantiam a salvação ao fiel, graças à realização da ação sagrada pelo ministério do sacerdote. Para tanto, o indivíduo devia contribuir apenas com a confissão pessoal dos pecados, com o arrependimento e a penitência. Com a eliminação da ação sagrada eficaz, passou a faltar a resposta de Deus ao propósito do indivíduo. São essas as lacunas que explicam o anseio e a busca de sistemas que prometessem essa resposta, ou seja, um gesto de complacência e aceitação por parte de outrem (superiores, diretores espirituais ou mesmo Deus).
A Ciência europeia não tomava na devida conta essas esperanças e expectativas. Mantinha-se distanciada e isolada das convicções e necessidades religiosas do grande público. Esse isolamento do espírito ocidental, inevitável do ponto de vista histórico, apoderou-se também da doutrina do Yoga, na medida em que foi acolhida no Ocidente, transformando-a, de um lado, em objeto de ciência, e, de outro, saudando-a como processo terapêutico. É verdade que não se pode negar a existência, no seio desse movimento, de toda uma série de tentativas no sentido de conciliar a Ciência com a convicção religiosa e a prática, como no caso da Christian Science, a Teosofia e a Antroposofia, das quais notadamente a última gosta de se apresentar com laivos de Ciência; por isso a Antroposofia, do mesmo modo que a Christian Science, invalida certos ambientes de cultura intelectual.
Como o Protestantismo não tem um caminho previamente traçado, qualquer sistema que lhe permita um desenvolvimento adequado é, por assim dizer, bem visto por ele. No fundo, deveria fazer tudo aquilo que a Igreja sempre fez como mediadora, só que agora não sabe como fazê-lo. Tendo levado a sério as próprias necessidades religiosas, também fez esforços inauditos para crer. Mas a fé é um carisma, um dom da graça, e não um método. E é justamente um método que faz falta aos Protestantes, a ponto de muitos deles terem se interessado seriamente pelos exercícios espirituais de Inácio de Loyola, rigorosamente católicos. Mas o que mais os perturba é a contradição entre a verdade religiosa e a verdade científica, o conflito entre a fé e o saber que, através do Protestantismo, afetou até mesmo o Catolicismo. Esse conflito existe única e exclusivamente por causa da cisão histórica operada no pensamento europeu. Se não houvesse, de um lado, um impulso psicológico inatural para crer, e do outro, uma fé, igualmente inatural, na Ciência, não haveria qualquer razão para esse conflito. Seria fácil, então, imaginar um estado em que o indivíduo simplesmente soubesse e ao mesmo tempo acreditasse naquilo que lhe parecesse provável por estas ou aquelas boas razões. A rigor não há, forçosamente, uma razão para o conflito entre essas duas coisas. Na verdade, ambas são necessárias, pois apenas o conhecimento, assim como apenas a fé, são sempre insuficientes para atender às necessidades religiosas do indivíduo.
Por isso, se se propuser algum método religioso como “científico”, pode-se estar certo de contar com o público no Ocidente. O Yoga satisfaz a essa expectativa. À parte o estímulo da novidade e o fascínio pela meia compreensão, o Yoga conquista muitos adeptos por boas razões: ele propõe não só um método tão amplamente procurado, como também uma filosofia de inaudita profundidade. Oferece a possibilidade de uma experiência controlável, satisfazendo com isso a necessidade científica de “fatos”; e, além disso, graças à sua amplitude e profundeza, à sua idade venerável, à sua doutrina e metodologia, que abarcam todos os domínios da vida, promete insuspeitadas possibilidades que os pregadores da doutrina raramente deixaram de sublinhar.
Silencio a importância que o Yoga tem na Índia, pois não me sinto autorizado a emitir um juízo a respeito de algo que não conheço por experiência própria. Mas posso dizer alguma coisa sobre aquilo que ele significa para o Ocidente. A ausência de métodos entre nós raia pela anarquia psíquica. Por isso, qualquer prática religiosa ou filosófica significa uma espécie de disciplinamento psicológico e, consequentemente, também um método de higiene mental. As inúmeras formas de proceder do Yoga, de natureza puramente corporal, significam também uma higiene fisiológica que, pelo fato de estar subordinada à ginástica costumeira ou aos exercícios de controle da respiração, é também de natureza filosófica, e não apenas mecânica e científica. De fato, nesses exercícios, ele liga o corpo à totalidade do espírito, coisa que se pode ver claramente nos exercícios de pranayama, onde o prana é ao mesmo tempo a respiração e a dinâmica universal do cosmos. Como a ação do indivíduo é ao mesmo tempo um acontecimento cósmico, o assenhoreamento do corpo (inervação) se associa ao assenhoreamento do espírito (da ideia universal), resultando daí uma totalidade viva que nenhuma técnica, por mais científica que seja, é capaz de produzir. Sem as representações do Yoga, seria inconcebível e também ineficaz a prática do Yoga. Ele trabalha com o corporal e o espiritual unidos um ao outro de maneira raramente superada.
No Oriente, onde surgiram essas ideias e essas práticas, e onde há quatro mil anos uma tradição ininterrupta criou todas as bases e os pressupostos espirituais necessários, o Yoga, como é fácil de imaginar, tornou-se a expressão mais adequada e a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma unidade que dificilmente se pode negar, gerando, assim, uma disposição psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que transcendem o plano da consciência. A mentalidade histórica da Índia não tem, a princípio, qualquer dificuldade em trabalhar analogicamente com um conceito como o de prana. Mas o Ocidente, com seu mau costume de querer crer, de um lado, e com a sua crítica de origem filosófica e científica, do outro, cai cegamente na armadilha da crença e engole conceitos e termos como prana, atman, chakra, samadhi etc. Mas a própria crítica científica já tropeça contra o conceito de prana e de Purusha. Por isso, a cisão operada no espírito ocidental torna impossível, de início, uma adequada realização das intenções do Yoga. Ou esse é um assunto estritamente religioso, ou um training, como a mnemotécnica, a ginástica respiratória, a eurritmia etc. Mas não se encontra o mínimo vestígio daquela unidade e dessa totalidade que é própria do Yoga. O hindu não consegue esquecer nem o corpo nem o espírito. O europeu, pelo contrário, esquece sempre um ou outro. Foi graças a essa capacidade que ele conquistou antecipadamente o mundo, isso não ocorrendo ao hindu. Este não somente conhece a sua natureza, como também sabe até onde ele próprio é essa natureza. O europeu, pelo contrário, tem uma ciência da natureza e sabe espantosamente muito pouco a respeito da natureza que está nele. Para o hindu é um benefício conhecer um método que o ajude a vencer o poder supremo da natureza, por dentro e por fora. Para o europeu é um veneno reprimir totalmente a natureza já mutilada e transformá-la em robô obediente.
Embora se afirme que o Yoga é capaz de mover montanhas, é difícil apresentar uma prova nesse sentido. O poder do Yoga se situa dentro dos limites admissíveis para seu meio ambiente. O europeu, pelo contrário, pode fazer montanhas saltarem pelos ares, e a guerra mundial nos deu um antegosto amargo de tudo o quanto ele é ainda capaz de fazer, quando seu intelecto alienado da natureza se liberta de todos os freios. Como europeu, não posso desejar que o homem adquira ainda um maior “controle” e poder sobre a natureza, tanto exterior como interiormente. Sim, devo confessar, para vergonha minha, que devo os meus melhores conhecimentos (e entre eles há alguns que são inteiramente bons) à circunstância de, por assim dizer, ter feito sempre o contrário do que nos dizem todas as regras do Yoga. Graças ao desenvolvimento histórico, o europeu se distanciou de suas raízes, e seu espírito terminou por cindir-se entre fé e saber, da mesma forma que qualquer excesso de natureza psicológica se dissolve nos pares opostos. O europeu precisa retornar, não à natureza, à maneira de Rousseau, mas à sua natureza. Sua missão consiste em redescobrir o homem natural. Em vez disso, porém, o que ele prefere são sistemas e métodos com os quais possa reprimir o homem natural que atravessa seu caminho, onde quer que esteja. Com toda certeza, ele fará mau uso do Yoga, pois sua disposição psíquica é totalmente diversa da do homem oriental. Sempre digo a quem posso: “Estude bem o Yoga. Você aprenderá um número infinito de coisas com ele, mas não o utilize, pois nós, europeus, não somos feitos para usar sem mais nem menos tais métodos. Um guru hindu poderá explicar-lhe tudo muito claramente e você poderá executar, depois, o que ele lhe tiver ensinado, mas saberá você quem está se utilizando do Yoga? Em outras palavras: saberá você quem é você mesmo e de que modo é constituído?”.
O poder da Ciência e da Técnica na Europa é tão grande e tão incontestável, que é quase uma pura perda de tempo procurar saber o que se pode fazer e o que já se inventou. Sentimo-nos tomados de pavor diante das imensas possibilidades do europeu. E aqui uma questão inteiramente diferente começa a se delinear: Quem emprega esse poder? Em mãos de quem se encontra essa capacidade de ação? O Estado é ainda por algum tempo um instrumento preventivo que aparentemente protege o cidadão contra a massa incalculável de venenos e de outros meios infernais de destruição; estes podem ser produzidos sempre a curtíssimo prazo e em toneladas. O poder tornou-se de tal modo perigoso, que é cada vez mais premente a questão, não tanto de saber o que ainda se pode fazer, mas de que modo deveria ser constituído o homem ao qual se confia o controle deste “poder”, ou de que maneira se poderia mudar a mentalidade do homem ocidental para que renunciasse a seu terrível poder. Seria infinitamente mais importante tirar-lhe a ilusão desse poder do que reforçá-lo na errônea convicção de que pode tudo quanto quer. O slogan “Querer é poder” custou a vida a milhões de pessoas.
O homem ocidental não necessita da superioridade sobre a natureza, tanto dentro como fora, pois dispõe de ambas as coisas de maneira perfeita e quase diabólica. O que ele, porém, não tem é o reconhecimento consciente de sua própria inferioridade em relação à natureza, tanto à sua volta como dentro de si. O que deveria aprender é que não é como ele quer que ele pode. Se não estiver consciente disso, destruirá a própria natureza. Desconhece sua própria alma que se rebela contra ele de maneira suicida.
Como tem o poder de transformar tudo em técnica, em princípio tudo quanto tem aparência de método é perigoso e está fadado ao insucesso. Porque o Yoga é também uma higiene, é útil ao homem como qualquer outro sistema. Mas, entendida no sentido mais profundo do termo, não é apenas isso. O que ele pretende – se não estou enganado – é desprender e libertar definitivamente a consciência de todas as amarras que a ligam ao objeto e ao sujeito. Como, porém, não se pode libertar o indivíduo daquilo de que ele não está consciente, o europeu deve primeiramente aprender a conhecer o sujeito, que no Ocidente é chamado de consciente. O método do Yoga está voltado exclusivamente para a consciência e para a vontade consciente. Um procedimento como esse só é promissor se o inconsciente não possuir qualquer potencial digno de nota, isto é, se não encerrar grande parte da personalidade. Se o empreende, então todos os esforços conscientes serão baldados e o produto dessa atitude de crispação é uma caricatura ou mesmo o oposto do que se esperaria como resultado natural.
Uma parte considerável e importante do inconsciente se acha expressa através da rica metafísica e do rico simbolismo do Oriente, reduzindo, com isso, o potencial desse mesmo inconsciente. Quando o yogi fala em prana, tem em mente muito mais do que a simples respiração. Na palavra prana ele ouve ainda o eco de toda a componente metafísica, e é como se realmente soubesse o que o prana significa também sob esse aspecto. Não o sabe pelo entendimento, mas pelo coração, pelo ventre e pelo sangue. O europeu, porém, aprende de cor e imita conceitos, e, por isso, não está em condições de exprimir sua realidade subjetiva através do conceito hindu. Para mim é quase fora de dúvida que o europeu, se pudesse ter as experiências que correspondem à sua índole, dificilmente escolheria justamente um conceito como o de prana para expressar essa experiência.
Originariamente, o Yoga era um processo natural de introversão que se operava com todas as suas variantes individuais possíveis. Tais introversões provocam estranhos processos internos que alteram a personalidade. Essas introversões foram-se organizando paulatinamente em métodos, no curso dos milênios, e isso das maneiras mais variadas possíveis. O próprio Yoga hindu conheceu um sem-número de formas estranhamente diversas. O motivo foi a diversidade original das experiências individuais. Com isso não queremos absolutamente dizer que qualquer um desses métodos se aplica à estrutura histórica específica do europeu. Pelo contrário, é provável que seu Yoga natural derive de modelos históricos que o Oriente desconhece. Na verdade, as duas tendências culturais que, no Ocidente, mais ocuparam-se praticamente com a alma, isto é, a medicina e a cura católica da alma, geraram métodos que poderemos muito bem comparar com o Yoga. Já mencionei os exercícios espirituais da Igreja Católica. Quanto à medicina, são precisamente alguns dos métodos psicoterapêuticos modernos os que mais se aproximam do Yoga. A psicanálise de Freud consiste em fazer com que a consciência do paciente remonte, de um lado, ao mundo interior das reminiscências infantis, e, de outro lado, aos desejos e impulsos recalcados pela consciência. Esse processo é um desenvolvimento lógico e consequente da prática da confissão. O seu intuito é provocar uma introversão, a fim de tornar conscientes as componentes inconscientes do sujeito.
Um método um pouco diferente é o chamado “treinamento autógeno”, proposto por J. H. Schultz(3), que adota de propósito o caminho do Yoga. Seu escopo principal é eliminar a atitude crispada de resistência da consciência e os recalques do inconsciente provocados por ela.
A minha metodologia se baseia, como a de Freud, na prática da confissão. Como ele, também levo em conta os sonhos, mas é na maneira de apreciar os sonhos que nossas concepções divergem. Para ele, o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da consciência, no qual estão reunidas todas as incompatibilidades. Para mim, o inconsciente é uma disposição psicológica coletiva de natureza criativa. Dessa divergência radical decorre também uma maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e seu método de interpretação. Freud procede de maneira essencialmente analítica e redutiva. Eu, porém, acrescento também um procedimento sintético que põe em relevo o caráter finalístico das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da personalidade. Esse ramo a pesquisa trouxe à luz importantes paralelos com o Yoga, especialmente com o Kundalini Yoga e com a simbólica tanto do Yoga tântrico do lamaísmo, quanto do Yoga taoísta da China. Essas formas de Yoga e seu rico simbolismo nos forneceram materiais comparativos preciosíssimos para a interpretação do inconsciente coletivo. Mas, em princípio, não aplico todos os métodos do Yoga, porque nada deve ser imposto ao inconsciente, no Ocidente. O mais das vezes, a consciência é de uma intensidade e de uma exiguidade convulsivas, e por isso não convém acentuá-las ainda mais. Devemos, pelo contrário, tanto quanto possível, ajudar o inconsciente a atingir a consciência, para arrancá-la de seu entorpecimento. Para esse fim, utilizo também uma espécie de método de imaginação ativa que consiste em um “training” especial de desligamento da consciência, para ajudar os conteúdos inconscientes a se expandirem.
Se procedo assim de forma tão acentuadamente crítica e negativa no confronto do Yoga, isso não significa de modo algum que eu não considere as aquisições espirituais do Oriente como o que de mais grandioso o espírito humano jamais criou. Espero que dessa minha exposição resulte com suficiente clareza que minha crítica se volta única e exclusivamente contra a aplicação do Yoga ao homem do Ocidente. A evolução espiritual do Ocidente seguiu caminhos totalmente diversos dos do Oriente, razão pela qual surgiram condições sumamente desfavoráveis para a aplicação do Yoga. A civilização ocidental tem pouco menos de dois mil anos de existência; ela deve primeiramente libertar-se de suas unilateralidades bárbaras. Para isso é preciso uma percepção e uma visão mais profundas da natureza do homem. Mas com a repressão e a dominação não se chega a conhecimento algum, e menos ainda com a imitação de métodos que surgiram de condições psicológicas totalmente diversas. Com o perpassar dos séculos, o Ocidente irá formando seu próprio Yoga, e isso se fará sobre a base criada pelo Cristianismo.
- Texto (originalmente publicado em tradução inglesa em Prabuddha Bharata, Calcutá, fevereiro de 1936) extraído do capítulo O Yoga e o Ocidente, publicado nas páginas 52 a 60 do livro Psicologia e Religião Oriental (Zur Psychologie westlicher und östlicher Religion), de Carl Gustav Jung (1875-1961), com tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha e revisão de Dora Ferreira da Silva, das Obras Completas de C. G. Jung, volume XI/5, Editora Vozes, 5ª edição, 1991, e digitado por Cristiano Bezerra (1971-) para este blog, Yoga Pleno, em 6 de julho de 2008. [↩]
- Cf. Apolônio de Tiana, bem como as doutrinas dos mistérios órficos e pitagóricos e a Gnose etc. [↩]
- Cf. J. H. Schultz, Das autogene Training, Berlim, 1932. [↩]
Palavras do texto: “Sempre digo a quem posso: ‘Estude bem o Yoga. Você aprenderá um número infinito de coisas com ele, mas não o utilize, pois nós, europeus, não somos feitos para usar sem mais nem menos tais métodos. Um guru hindu poderá explicar-lhe tudo muito claramente e você poderá executar, depois, o que ele lhe tiver ensinado, mas saberá você quem está se utilizando do Yoga? Em outras palavras: saberá você quem é você mesmo e de que modo é constituído?’.”
Vejam bem, ele desaconselha o ocidental a praticar Yoga. Me parece muito estranho que todos aqueles que fizeram o seu diferencial terapêutico buscando esse conhecimento no Yoga façam a crítica ao Yoga justamente no ponto de seu diferencial, ou seja, no caso de Jung, o Self. O Yoga busca exatamente isso: conhecer a si mesmo, e esse conhecimento é dado nas Upanishads, na Bhagavad Gita, no Yoga Sutra… Ao mesmo tempo em que ele exalta o conhecimento védico e o Yoga, ele desaconselha seguir esse caminho. Ou seja, “façam terapia junguiana e não Yoga”, é isso o que ele diz!
Eu li este texto já faz muito tempo e fiquei muito indignada.
Olá, Denise, grato pela tua reflexão e questionamento. Concordo com todas as tuas colocações, até porque entendo o Yoga como um conhecimento prático de caráter universal, pertencente a toda a humanidade, e não somente ao oriental ou ao hindu; entretanto, considero importante ponderar que esse ponto de vista expresso por Jung data de 1936, ou seja, quase 30 anos antes de seu falecimento. Provavelmente essas suas ideias já não fossem mais exatamente as mesmas ao final de sua existência, bem como talvez não fossem as mesmas nesta atualidade, sobretudo após a expansão maior da prática do Yoga no Ocidente a partir dos anos 60, 70 e principalmente 90 do século XX.
Adorei… Estou repassando-o pro meu companheiro, que tem 83 anos, é junguiano e nunca tinha visto esse texto, apesar dele compartilhar essa ideia. Vibro quando sinto a sintonia… A frequência das ondas mentais nessa linha.
Que ótimo, Stela! Fico muito feliz que você tenha gostado tanto assim e compartilhado com o teu companheiro.
Cristiano, parabéns pelo aniversário!
Em poucos dias estarei completando também um aniversário muito especial: serão 3 anos desde a minha primeira aula de Yoga com você. Desde então, sou praticante. Muito grata, pois devo isso também a você.
Parabéns pelo aniversário, pelo site, pelos textos e pelo seu trabalho de divulgação do Yoga.
Abração. Namaste, Josi.
Muito grato, Josi, não há de que e feliz aniversário de 3 anos de prática ininterrupta de Yoga para você! Namaste e abração pra você também.
Olá, pessoal!
Gostei desse artigo de breve introdução ao Yoga no Ocidente. Essa parte cultural é muito interessante.
Um abraço a todos!
Olá, Lúcia! Que bom que você gostou! Muito grato e outro abraço para você também!
Olá, Cristiano, tudo OM?
Muito legal esse texto do Jung, eu não conhecia. Esta passagem diz bem o que é o Yoga:
“O Yoga, como é fácil de imaginar, tornou-se a expressão mais adequada e a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma unidade que dificilmente se pode negar, gerando, assim, uma disposição psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que transcendem o plano da consciência.”
Cristiano, parabéns pelo seu aniversário… Tudo de melhor na sua vida… Muita paz, amor, luz e Yoga! Namaste!
Felicidades, Lucas e Camila.
Valeu, meus amigos queridos, Lucas e Camila, muitíssimo grato pela lembrança, e muita paz, amor, luz e Yoga pra vocês também!