O que o Yoga não é
1)
O que é o Yoga? Essa é uma pergunta que aprendi a temer, porque é impossível respondê-la em poucas palavras. Dizer, por exemplo, que o Yoga é a ciência do ser e a arte do existir é uma resposta precisa e poética. Todavia, para que venha a ser compreendida por um leigo, será necessário acrescentar um longo comentário.
O objetivo primordial do Yoga é levar-nos, através de técnicas tanto físicas quanto psíquicas, a vivenciar estados do ser que se situam além da atividade mental que opera com palavras e ideias: além dos pensamentos, enfim.
E, logo aqui, nos deparamos com uma grande dificuldade em relação aos conceitos, pois, para o ocidental, o que se situa além da atividade mental pensante é o inconsciente, enquanto que, para o Yoga, o que fica além dos pensamentos é o reino da consciência pura, do qual a mente ordinária deveria ser apenas um canal de expressão.
Essa divergência radical encontra eco nas diferentes versões de Freud e Jung sobre o inconsciente. Freud descreveu um inconsciente conflituoso e problemático que, subliminarmente, controla nossos atos à nossa revelia. Um sabotador. Muitas vezes, um inimigo. Jung descreveu um inconsciente vasto e sábio, que chamou de Si Mesmo (no original alemão Selbst; no inglês, geralmente adotado o termo Self). Para Jung, o inconsciente age como um guia, enviando-nos mensagens esclarecedoras e orientadoras.
Para o Yoga ambos estão certos, mas falam de coisas diferentes. Jung fala de um inconsciente que sabe mais do que o consciente, um inconsciente que não apenas está além da consciência ordinária, mas que se situa acima dela, embora ele não fizesse essa distinção. O Yoga afirma que essa é a verdadeira consciência, da qual a outra, a pensante, é o sistema de operacionalização. Vamos chamá-la de consciência espiritual.
O inconsciente de Freud é realmente o subconsciente, como ele inicialmente o denominou. A função legítima do subconsciente é funcionar como um arquivo e poupar-nos da necessidade de manter a atenção nos processos repetitivos e rotineiros, como dirigir um carro ou datilografar. Tudo aquilo que está arquivado no subconsciente deveria poder ser trazido ao consciente, sem dificuldade. O subconsciente problemático é constituído por experiências e percepções que implicariam em conflito, e que banimos da consciência porque não nos sentíamos preparados para encará-los e resolvê-los. Como afastá-lo da consciência não significa eliminá-lo, o problema continua existindo, embora fora do nosso alcance.
O Yoga diz que o subconsciente é a morada dos samskaras e das vasanas, as impressões e tendências subconscientes que modelam o nosso caráter. Purificar nossa mente dos conflitos porventura existentes entre o subconsciente, a mente racional e a consciência espiritual é o papel do Kriya Yoga, tal como descrito por Patañjali, codificador do Yoga mental, o Raja Yoga.
Esse processo de purificação é indispensável para que não façamos confusão entre as intuições que vêm do supra mental e os conteúdos que vêm do subconsciente. Para que não confundamos aquilo que é fruto de uma sabedoria superior com aquilo que é irracional.
O objetivo desse Yoga é colocar-nos em contato com as raízes do nosso ser que, diferentemente das raízes vegetais, ficam acima e não abaixo da copa. Essa árvore mítica tem, em sânscrito, o nome de Ashvatta. Suas raízes são supra mentais e constituem uma forma de consciência superior à consciência ordinária. Trata-se de uma consciência espiritual capaz de discernir o sentido evolutivo da vida e decidir sobre valores: o que é bem, o que é mal e porque. É profundamente diferente da consciência mental, cuja lógica racional pode apenas detectar incoerências e operacionalizar ações.
Toda ação depende de decisões prévias, e toda decisão é tomada a partir de um sistema de valores. Quando esse esquema de valores não é providenciado pela consciência espiritual, será formulado sob a influência dos desejos emocionais e instintivos que provêm de níveis do ser hierarquicamente inferiores à razão. Essa inversão é responsável pelo estado dividido e conflituoso de nosso ser.
Para atingir a grande meta do Yoga e vivenciar a consciência supra mental, é necessário realizar previamente uma ampla tarefa, clareando a consciência nos diversos níveis do ser, compatibilizando e hierarquizando sua expressão, de modo que ela possa desempenhar suas funções sem repressão e sem abuso.
Yoga significa união: a união entre instinto, emoção e razão; união da consciência mental com a consciência espiritual. Usando uma linguagem ocidental, a união do ego com o Si Mesmo (ou Self), no que Jung chamou de processo de individuação ou realização da função transcendente, conforme sua terminologia.
Yoga também significa jugo, ou seja, a manifestação organizada e hierarquizada do ser, sem inversões de comando, para que a razão governe sobre a emoção e o instinto, e para que os objetivos concretos não se sobreponham aos valores abstratos de uma verdadeira ética espiritual.
Yoga significa também um estado transcendente além dos vrttis (ondas mentais, pensamentos); significa a dimensão infinita do ser, o eterno agora onde o silêncio é a única resposta de uma presença inexprimível.
Como vemos, não é fácil encontrar uma definição que abranja tudo aquilo que o Yoga é, porque o Yoga é uma prática e um objetivo que engloba o ser do homem em toda a sua complexidade orgânica, psíquica e espiritual.
Enquanto técnica, o Yoga é também globalizante, porque trabalha com todos os níveis da consciência humana: o corpo, a energia vital, as emoções, o pensamento cotidiano, o pensamento abstrato e a intuição. Existem diversos ramos de Yoga, porque existem pessoas com aptidões diferenciadas e temperamentos diversos. Cada um desses ramos trabalha com um nível do ser, aquele com a qual a pessoa tem mais afinidade e com aquilo que representa a linha de menor resistência para ela. Essa característica, que representa uma grande vantagem prática, e é fruto de uma sabedoria que reconhece a diversidade dos seres humanos e de suas necessidades específicas, tem contribuído para confundir as pessoas que adotam uma abordagem superficial a respeito do Yoga.
Encontramos muito frequentemente sistemas filosóficos ou religiosos que pretendem uma abordagem única e uniformizante, o que conduz à exclusão ou perseguição daqueles cuja própria maneira de ser torna difícil, ou até mesmo impossível, a aceitação daquele caminho. O Yoga compreende que podemos atingir a mesma meta vindo por caminhos que parecem diametralmente opostos, mas que, na verdade, são compatíveis e complementares, vistos a partir de uma perspectiva mais ampla e menos sectária.
Não é fácil para os ocidentais compreender aquilo que o Yoga é. Está muito distante de sua cultura. Assim, confundem o Yoga com ginástica, quando veem o Hatha Yoga, e confundem-no com religião quando veem o Bhakti Yoga. Fazem essas analogias porque lembram-se de algo que já conhecem, pertencente ao seu universo mental. Assim, é oportuno esclarecer alguns dos lugares-comuns sobre o Yoga, já que muitas pessoas têm dele uma impressão completamente falsa.
O que o Yoga não é
» por Maria Alice Figueiredo (O que é o Yoga? Essa é uma pergunta que aprendi a temer, porque é impossível respondê-la em poucas palavras. Dizer, por exemplo, que o Yoga é a ciência do ser e a arte do existir é uma resposta precisa e poética. Todavia, para que venha a ser compreendida por um leigo, será necessário acrescentar um longo comentário.
O objetivo primordial do Yoga é levar-nos, através de técnicas tanto físicas quanto psíquicas, a vivenciar estados do ser que se situam além da atividade mental que opera com palavras e ideias: além dos pensamentos, enfim.
E, logo aqui, nos deparamos com uma grande dificuldade em relação aos conceitos, pois, para o ocidental, o que se situa além da atividade mental pensante é o inconsciente, enquanto que, para o Yoga, o que fica além dos pensamentos é o reino da consciência pura, do qual a mente ordinária deveria ser apenas um canal de expressão.
Essa divergência radical encontra eco nas diferentes versões de Freud e Jung sobre o inconsciente. Freud descreveu um inconsciente conflituoso e problemático que, subliminarmente, controla nossos atos à nossa revelia. Um sabotador. Muitas vezes, um inimigo. Jung descreveu um inconsciente vasto e sábio, que chamou de Si Mesmo (no original alemão Selbst; no inglês, geralmente adotado o termo Self). Para Jung, o inconsciente age como um guia, enviando-nos mensagens esclarecedoras e orientadoras.
Para o Yoga ambos estão certos, mas falam de coisas diferentes. Jung fala de um inconsciente que sabe mais do que o consciente, um inconsciente que não apenas está além da consciência ordinária, mas que se situa acima dela, embora ele não fizesse essa distinção. O Yoga afirma que essa é a verdadeira consciência, da qual a outra, a pensante, é o sistema de operacionalização. Vamos chamá-la de consciência espiritual.
O inconsciente de Freud é realmente o subconsciente, como ele inicialmente o denominou. A função legítima do subconsciente é funcionar como um arquivo e poupar-nos da necessidade de manter a atenção nos processos repetitivos e rotineiros, como dirigir um carro ou datilografar. Tudo aquilo que está arquivado no subconsciente deveria poder ser trazido ao consciente, sem dificuldade. O subconsciente problemático é constituído por experiências e percepções que implicariam em conflito, e que banimos da consciência porque não nos sentíamos preparados para encará-los e resolvê-los. Como afastá-lo da consciência não significa eliminá-lo, o problema continua existindo, embora fora do nosso alcance.
O Yoga diz que o subconsciente é a morada dos samskaras e das vasanas, as impressões e tendências subconscientes que modelam o nosso caráter. Purificar nossa mente dos conflitos porventura existentes entre o subconsciente, a mente racional e a consciência espiritual é o papel do Kriya Yoga, tal como descrito por Patañjali, codificador do Yoga mental, o Raja Yoga.
Esse processo de purificação é indispensável para que não façamos confusão entre as intuições que vêm do supra mental e os conteúdos que vêm do subconsciente. Para que não confundamos aquilo que é fruto de uma sabedoria superior com aquilo que é irracional.
O objetivo desse Yoga é colocar-nos em contato com as raízes do nosso ser que, diferentemente das raízes vegetais, ficam acima e não abaixo da copa. Essa árvore mítica tem, em sânscrito, o nome de Ashvatta. Suas raízes são supra mentais e constituem uma forma de consciência superior à consciência ordinária. Trata-se de uma consciência espiritual capaz de discernir o sentido evolutivo da vida e decidir sobre valores: o que é bem, o que é mal e porque. É profundamente diferente da consciência mental, cuja lógica racional pode apenas detectar incoerências e operacionalizar ações.
Toda ação depende de decisões prévias, e toda decisão é tomada a partir de um sistema de valores. Quando esse esquema de valores não é providenciado pela consciência espiritual, será formulado sob a influência dos desejos emocionais e instintivos que provêm de níveis do ser hierarquicamente inferiores à razão. Essa inversão é responsável pelo estado dividido e conflituoso de nosso ser.
Para atingir a grande meta do Yoga e vivenciar a consciência supra mental, é necessário realizar previamente uma ampla tarefa, clareando a consciência nos diversos níveis do ser, compatibilizando e hierarquizando sua expressão, de modo que ela possa desempenhar suas funções sem repressão e sem abuso.
Yoga significa união: a união entre instinto, emoção e razão; união da consciência mental com a consciência espiritual. Usando uma linguagem ocidental, a união do ego com o Si Mesmo (ou Self), no que Jung chamou de processo de individuação ou realização da função transcendente, conforme sua terminologia.
Yoga também significa jugo, ou seja, a manifestação organizada e hierarquizada do ser, sem inversões de comando, para que a razão governe sobre a emoção e o instinto, e para que os objetivos concretos não se sobreponham aos valores abstratos de uma verdadeira ética espiritual.
Yoga significa também um estado transcendente além dos vrttis (ondas mentais, pensamentos); significa a dimensão infinita do ser, o eterno agora onde o silêncio é a única resposta de uma presença inexprimível.
Como vemos, não é fácil encontrar uma definição que abranja tudo aquilo que o Yoga é, porque o Yoga é uma prática e um objetivo que engloba o ser do homem em toda a sua complexidade orgânica, psíquica e espiritual.
Enquanto técnica, o Yoga é também globalizante, porque trabalha com todos os níveis da consciência humana: o corpo, a energia vital, as emoções, o pensamento cotidiano, o pensamento abstrato e a intuição. Existem diversos ramos de Yoga, porque existem pessoas com aptidões diferenciadas e temperamentos diversos. Cada um desses ramos trabalha com um nível do ser, aquele com a qual a pessoa tem mais afinidade e com aquilo que representa a linha de menor resistência para ela. Essa característica, que representa uma grande vantagem prática, e é fruto de uma sabedoria que reconhece a diversidade dos seres humanos e de suas necessidades específicas, tem contribuído para confundir as pessoas que adotam uma abordagem superficial a respeito do Yoga.
Encontramos muito frequentemente sistemas filosóficos ou religiosos que pretendem uma abordagem única e uniformizante, o que conduz à exclusão ou perseguição daqueles cuja própria maneira de ser torna difícil, ou até mesmo impossível, a aceitação daquele caminho. O Yoga compreende que podemos atingir a mesma meta vindo por caminhos que parecem diametralmente opostos, mas que, na verdade, são compatíveis e complementares, vistos a partir de uma perspectiva mais ampla e menos sectária.
Não é fácil para os ocidentais compreender aquilo que o Yoga é. Está muito distante de sua cultura. Assim, confundem o Yoga com ginástica, quando veem o Hatha Yoga, e confundem-no com religião quando veem o Bhakti Yoga. Fazem essas analogias porque lembram-se de algo que já conhecem, pertencente ao seu universo mental. Assim, é oportuno esclarecer alguns dos lugares-comuns sobre o Yoga, já que muitas pessoas têm dele uma impressão completamente falsa.
Leia na sequência:
O que o Yoga não é
Yoga não é uma ginástica
Yoga não é relaxamento por sugestão
Yoga não é religião
Yoga não é mágica
- Texto extraído das páginas 25 a 28 do capítulo 1 do livro Yoga Vidya, a Sabedoria do Yoga – Conceitos Fundamentais (1997), de Maria Alice Figueiredo, e digitado por Cristiano Bezerra em 18 de janeiro de 2003 [↩]
Bom dia! Grata pelo artigo da Maria Alice. Gostaria de adquirir esse livro dela aqui citado. Procurei na Livraria Cultura e não encontrei. Sabe informar onde posso adquirir? Namaste!
Não há de que, Wilma, a gratidão é toda minha, e que bom que você gostou, fico muito feliz! Infelizmente esse excelente livro da professora Maria Alice está esgotado há mais de 15 anos e não será mais reeditado pela sua Autora. Entretanto, há pouco mais de 10 anos estive a conversar com ela pessoalmente, que me autorizou a digitar para este meu Blog não somente esse (que havia digitado em janeiro de 2003, mediante autorização que já havia pedido pessoalmente a ela) mas também todos os demais capítulos desse livro, o que farei pouco a pouco nos próximos meses e anos.