O que é Vedanta?
Gloria Arieira (1953-), do Vidya Mandir (1)
O homem é consciente de si mesmo, de um ser que é incompleto. Essa auto apreciação é peculiar ao homem, visto que, sendo consciente, ele é também consciente das próprias imperfeições, o que dá origem ao descontentamento. Assim sendo, a vida de um dado indivíduo é governada por desejos, que estabelecem o fato dele não estar à vontade consigo mesmo.
Desejos diferem de indivíduo para indivíduo. Não existem duas pessoas com o mesmo grupo de desejos. Cada um cultiva desejos particulares ao ser influenciado pelo meio cultural e pelas condições de vida em que nasce e se desenvolve.
Desejos diferem não apenas de um indivíduo para outro, mas vão se modificando constantemente enquanto vivemos, segundo fatores como idade e posição social. Aquilo que desejamos hoje não é o mesmo que desejávamos na infância.
Do ponto de vista da estimação do valor dos objetos, o universo inteiro pode ser dividido em três categorias:
1) objetos do meu gosto;
2) objetos de aversão;
3) objetos aos quais sou indiferente.
Dentro dessas três categorias, os objetos se permutam. Quero me divorciar da pessoa com quem casei, de quem gostava. Ela é hoje objeto de desgosto. Ou ainda, antes eu era indiferente ao futebol, mas hoje em dia o acompanho com grande interesse. Assim sendo, essas categorias nunca são constantes. Nossos objetos individuais e cultivados são vários e estão sempre a se modificar.
Porém, existe um desejo que é constante e universal: o desejo de ser feliz. Esse não é um desejo cultivado. Não o adquiri numa determinada hora e lugar. É um desejo fundamental, inato a todos. Assim como nasci com fome, sede e outras necessidades, nunca me ensinaram a querer felicidade. Desde que nasci, busco felicidade e contentamento. Esse desejo não é, portanto, sujeito à escolha. É natural. Nem tampouco à modificação. Não posso rejeitá-lo.
De fato, esse é o desejo fonte, causa de todos os desejos secundários e gerais. Através de desejos individuais, me esforço em satisfazer esse desejo inato e fundamental de ser feliz.
Além disso, meu desejo não é meramente o de ser feliz. Quero felicidade total. Não quero nada menos que felicidade absoluta. Estou cansado de ser feliz apenas de vez em quando e em diferentes graus. O que desejo realmente é felicidade absoluta. Quero ser pleno e completo. Quero ser ilimitado.
Aquele que é abençoado com um pensamento claro e maduro certamente reconhecerá que qualquer dos fins alcançados pela realização de desejos secundários não se transformará nunca no resultado que ambicionamos – felicidade absoluta. Não importa quanto adquira em vida, me julgo insuficiente. O problema não está no que quero, mas no querer. Os objetos de desejo surgem e desaparecem, permanecendo somente uma constante música de fundo em minha vida, o fato de que “eu quero… eu quero…”.
Tendo reconhecido esse problema, será que posso acreditar sem receio na possibilidade de tal coisa como felicidade plena? Não é isso meramente um sonho de um livro de estórias para crianças (“e eles viveram felizes para sempre”)? Sou eu um idealista imprático ao considerar tal possibilidade?
Não. Não é uma mente imatura que procura, mas uma pessoa sensível e capaz de apreciar que esse desejo não é sujeito à escolha, mas é fundamental. Não posso rejeitar o desejo de ser completo, visto que não o escolhi. Tampouco posso negar que a felicidade adquirida na realização dos incontáveis desejos individuais é fugaz, e que me encontro sempre incompleto. Somente um indivíduo prático ousa perguntar: “onde se encontra a felicidade?”. Prático porque dirige a sua atenção para a causa do problema. Aqueles que sem entender o problema vão por aí à procura de plenitude na esfera dos desejos individuais ainda estão “procurando no escuro”. Aquele que realmente procura é diferente de todos os outros, visto que tenta satisfazer um desejo único capaz de destruir todos os outros desejos. Somente quem reconhece esse problema fundamental é digno de ser chamado mumukshu(2), pois para ele somente esta busca é válida e significativa.
Se o desejo de ser feliz e ilimitado não é sujeito à escolha e é natural e universal, sem dúvida que não é sem sentido. Os meios de satisfazer os desejos naturais, como fome e sede, são necessariamente providos pela natureza. Assim sendo, tem que haver um meio de satisfazer o mais fundamental dos desejos. E, portanto, sendo esse o mais fundamental dos problemas de minha vida, pede um inquérito adequado.
Quanto mais se vive uma vida consciente, mais o desejo fundamental de ser completo se torna difícil de ser ignorado. E, até que se encontre uma solução para esse problema, não haverá tranquilidade. O método pelo qual esse inquérito se efetua é chamado Vedanta.
Vedanta não é um sistema filosófico. Tampouco religião. Vedanta é uma tradição de ensinamento transmitido de mestre a discípulo num fluxo perene desde tempos imemoriais. Assim como não podemos dizer o que veio primeiro, se a árvore ou a semente, é impossível delinear um começo para esse ensinamento.
Rotular Vedanta de “escola de filosofia” ou qualquer tipo de “ismo” é um grande erro da parte daqueles que não se expuseram devidamente ao método de ensino autêntico e tradicional. Nas Upanishads é dito que esse conhecimento deve ser recebido de um Srotrya Brahmanistha, um mestre não somente versado nos shastras(4), mas também uma personificação viva do próprio conhecimento. Somente aquele que encontra um tal mestre pode apreciar a singularidade e eficiência do ensinamento vedantino.
Assim sendo, Vedanta é uma tradição de conhecimento. Conhecimento de que? Temos ouvido explicações do tipo: “de um caminho para a Verdade”, “conhecimento do Ser”, ou “conhecimento da Verdade”. Aceitamos todas, porém o mais acertado será obter da própria tradição o significado do Vedanta. Jiva Brahma Aikyam é a essência do ensinamento, o que significa a identidade que se obtém entre o indivíduo, aquele que busca, e o Fim, o Ser Ilimitado. O ensinamento vedântico é um desdobramento claro e profundo dessa verdade essencial e única.
Outro aspecto importante do Vedanta é o método singular do ensinamento. Vedanta é referido como escola shabda pramanam, ou palavras que são um meio de conhecimento. Por intermédio de um hábil manipular de certas palavras e frases significativas, o mestre leva o estudante a reconhecer a verdade sobre Si Mesmo. Isso é entendido melhor por meio de uma ilustração: um certo indivíduo, pensando ter perdido suas chaves, não percebe tê-las em seu bolso, e sai à procura delas como um louco. Seu filho menor, cujas mãozinhas já reviraram bem aqueles bolsos, sabe exatamente onde estão as chaves, e diz: “Papai, olhe em seu bolso. As chaves estão com você”. Resmungando, o pai verifica em seus bolsos e descobre então que as chaves estavam consigo o tempo todo.
Na verdade, as chaves não estavam perdidas, mas de algum modo não as havia notado, e a sensação de perda fez com que as procurasse em outro lugar. Mesmo depois de muita procura, ele não as acharia, pois eram algo já adquirido. Ele as tinha consigo todo o tempo. O conhecimento errôneo “minhas chaves estão perdidas” precisava ser substituído pelo conhecimento correto “as chaves estão comigo”. O conhecimento transmitido por meio de uma frase dita por alguém bem informado libertou o homem de sua sensação de perda. Ao ouvir palavras adequadas e na hora certa, ele compreendeu ser o “possuidor das chaves”. Exatamente o que almejava ser. As palavras foram o meio pelo qual ele se livrou de sua ignorância.
Do mesmo modo, em Vedanta, as palavras são o meio de conhecimento pelo qual o mestre indica uma verdade já existente. A identidade existente entre o ser individual e o Absoluto é expressa pela frase “tu és Aquilo”. Não se diz “tu te tornarás Aquilo (mais tarde)”. Visto que essa verdade é algo já existente, não será adquirida através de uma ação, mas sim por conhecimento. E para conhecer algo é necessário um meio de conhecimento. Vedanta é o meio de conhecimento que, por ser em forma de palavras, necessita de um mestre. Um mestre de Vedanta é aquele que dissipa a escuridão, a ignorância que impede alguém de conhecer a si mesmo.
Vedanta é, então, um meio de conhecimento que proporciona o conhecimento do Ser. Outros meios de conhecimento à nossa disposição não o possibilitam, e, portanto, esse método de conhecimento em particular se faz necessário. Assim como nossos olhos são os meios de conhecimento para que formas e cores sejam conhecidas, Vedanta é o meio para o conhecimento do Ser.
Om.
» por O homem é consciente de si mesmo, de um ser que é incompleto. Essa auto apreciação é peculiar ao homem, visto que, sendo consciente, ele é também consciente das próprias imperfeições, o que dá origem ao descontentamento. Assim sendo, a vida de um dado indivíduo é governada por desejos, que estabelecem o fato dele não estar à vontade consigo mesmo.
Desejos diferem de indivíduo para indivíduo. Não existem duas pessoas com o mesmo grupo de desejos. Cada um cultiva desejos particulares ao ser influenciado pelo meio cultural e pelas condições de vida em que nasce e se desenvolve.
Desejos diferem não apenas de um indivíduo para outro, mas vão se modificando constantemente enquanto vivemos, segundo fatores como idade e posição social. Aquilo que desejamos hoje não é o mesmo que desejávamos na infância.
Do ponto de vista da estimação do valor dos objetos, o universo inteiro pode ser dividido em três categorias:
1) objetos do meu gosto;
2) objetos de aversão;
3) objetos aos quais sou indiferente.
Dentro dessas três categorias, os objetos se permutam. Quero me divorciar da pessoa com quem casei, de quem gostava. Ela é hoje objeto de desgosto. Ou ainda, antes eu era indiferente ao futebol, mas hoje em dia o acompanho com grande interesse. Assim sendo, essas categorias nunca são constantes. Nossos objetos individuais e cultivados são vários e estão sempre a se modificar.
Porém, existe um desejo que é constante e universal: o desejo de ser feliz. Esse não é um desejo cultivado. Não o adquiri numa determinada hora e lugar. É um desejo fundamental, inato a todos. Assim como nasci com fome, sede e outras necessidades, nunca me ensinaram a querer felicidade. Desde que nasci, busco felicidade e contentamento. Esse desejo não é, portanto, sujeito à escolha. É natural. Nem tampouco à modificação. Não posso rejeitá-lo.
De fato, esse é o desejo fonte, causa de todos os desejos secundários e gerais. Através de desejos individuais, me esforço em satisfazer esse desejo inato e fundamental de ser feliz.
Além disso, meu desejo não é meramente o de ser feliz. Quero felicidade total. Não quero nada menos que felicidade absoluta. Estou cansado de ser feliz apenas de vez em quando e em diferentes graus. O que desejo realmente é felicidade absoluta. Quero ser pleno e completo. Quero ser ilimitado.
Aquele que é abençoado com um pensamento claro e maduro certamente reconhecerá que qualquer dos fins alcançados pela realização de desejos secundários não se transformará nunca no resultado que ambicionamos – felicidade absoluta. Não importa quanto adquira em vida, me julgo insuficiente. O problema não está no que quero, mas no querer. Os objetos de desejo surgem e desaparecem, permanecendo somente uma constante música de fundo em minha vida, o fato de que “eu quero… eu quero…”.
Tendo reconhecido esse problema, será que posso acreditar sem receio na possibilidade de tal coisa como felicidade plena? Não é isso meramente um sonho de um livro de estórias para crianças (“e eles viveram felizes para sempre”)? Sou eu um idealista imprático ao considerar tal possibilidade?
Não. Não é uma mente imatura que procura, mas uma pessoa sensível e capaz de apreciar que esse desejo não é sujeito à escolha, mas é fundamental. Não posso rejeitar o desejo de ser completo, visto que não o escolhi. Tampouco posso negar que a felicidade adquirida na realização dos incontáveis desejos individuais é fugaz, e que me encontro sempre incompleto. Somente um indivíduo prático ousa perguntar: “onde se encontra a felicidade?”. Prático porque dirige a sua atenção para a causa do problema. Aqueles que sem entender o problema vão por aí à procura de plenitude na esfera dos desejos individuais ainda estão “procurando no escuro”. Aquele que realmente procura é diferente de todos os outros, visto que tenta satisfazer um desejo único capaz de destruir todos os outros desejos. Somente quem reconhece esse problema fundamental é digno de ser chamado mumukshu(2), pois para ele somente esta busca é válida e significativa.
Se o desejo de ser feliz e ilimitado não é sujeito à escolha e é natural e universal, sem dúvida que não é sem sentido. Os meios de satisfazer os desejos naturais, como fome e sede, são necessariamente providos pela natureza. Assim sendo, tem que haver um meio de satisfazer o mais fundamental dos desejos. E, portanto, sendo esse o mais fundamental dos problemas de minha vida, pede um inquérito adequado.
Quanto mais se vive uma vida consciente, mais o desejo fundamental de ser completo se torna difícil de ser ignorado. E, até que se encontre uma solução para esse problema, não haverá tranquilidade. O método pelo qual esse inquérito se efetua é chamado Vedanta.
Vedanta, um meio de conhecimento
Na parte final de cada um dos quatro Vedas(3) encontram-se as Upanishads. A essas é dado a designação geral de Vedanta. A palavra se deriva de vedanam antah, que significa o final dos Vedas. Outra designação dada às Upanishads, geralmente usada e que carrega uma significação importante, é Sruti, que significa aquilo que é ouvido. Aqui podemos apreciar que as Upanishads não são um conhecimento teórico contido em livros, mas um ensinamento que deve ser ouvido.Vedanta não é um sistema filosófico. Tampouco religião. Vedanta é uma tradição de ensinamento transmitido de mestre a discípulo num fluxo perene desde tempos imemoriais. Assim como não podemos dizer o que veio primeiro, se a árvore ou a semente, é impossível delinear um começo para esse ensinamento.
Rotular Vedanta de “escola de filosofia” ou qualquer tipo de “ismo” é um grande erro da parte daqueles que não se expuseram devidamente ao método de ensino autêntico e tradicional. Nas Upanishads é dito que esse conhecimento deve ser recebido de um Srotrya Brahmanistha, um mestre não somente versado nos shastras(4), mas também uma personificação viva do próprio conhecimento. Somente aquele que encontra um tal mestre pode apreciar a singularidade e eficiência do ensinamento vedantino.
Assim sendo, Vedanta é uma tradição de conhecimento. Conhecimento de que? Temos ouvido explicações do tipo: “de um caminho para a Verdade”, “conhecimento do Ser”, ou “conhecimento da Verdade”. Aceitamos todas, porém o mais acertado será obter da própria tradição o significado do Vedanta. Jiva Brahma Aikyam é a essência do ensinamento, o que significa a identidade que se obtém entre o indivíduo, aquele que busca, e o Fim, o Ser Ilimitado. O ensinamento vedântico é um desdobramento claro e profundo dessa verdade essencial e única.
Outro aspecto importante do Vedanta é o método singular do ensinamento. Vedanta é referido como escola shabda pramanam, ou palavras que são um meio de conhecimento. Por intermédio de um hábil manipular de certas palavras e frases significativas, o mestre leva o estudante a reconhecer a verdade sobre Si Mesmo. Isso é entendido melhor por meio de uma ilustração: um certo indivíduo, pensando ter perdido suas chaves, não percebe tê-las em seu bolso, e sai à procura delas como um louco. Seu filho menor, cujas mãozinhas já reviraram bem aqueles bolsos, sabe exatamente onde estão as chaves, e diz: “Papai, olhe em seu bolso. As chaves estão com você”. Resmungando, o pai verifica em seus bolsos e descobre então que as chaves estavam consigo o tempo todo.
Na verdade, as chaves não estavam perdidas, mas de algum modo não as havia notado, e a sensação de perda fez com que as procurasse em outro lugar. Mesmo depois de muita procura, ele não as acharia, pois eram algo já adquirido. Ele as tinha consigo todo o tempo. O conhecimento errôneo “minhas chaves estão perdidas” precisava ser substituído pelo conhecimento correto “as chaves estão comigo”. O conhecimento transmitido por meio de uma frase dita por alguém bem informado libertou o homem de sua sensação de perda. Ao ouvir palavras adequadas e na hora certa, ele compreendeu ser o “possuidor das chaves”. Exatamente o que almejava ser. As palavras foram o meio pelo qual ele se livrou de sua ignorância.
Do mesmo modo, em Vedanta, as palavras são o meio de conhecimento pelo qual o mestre indica uma verdade já existente. A identidade existente entre o ser individual e o Absoluto é expressa pela frase “tu és Aquilo”. Não se diz “tu te tornarás Aquilo (mais tarde)”. Visto que essa verdade é algo já existente, não será adquirida através de uma ação, mas sim por conhecimento. E para conhecer algo é necessário um meio de conhecimento. Vedanta é o meio de conhecimento que, por ser em forma de palavras, necessita de um mestre. Um mestre de Vedanta é aquele que dissipa a escuridão, a ignorância que impede alguém de conhecer a si mesmo.
Vedanta é, então, um meio de conhecimento que proporciona o conhecimento do Ser. Outros meios de conhecimento à nossa disposição não o possibilitam, e, portanto, esse método de conhecimento em particular se faz necessário. Assim como nossos olhos são os meios de conhecimento para que formas e cores sejam conhecidas, Vedanta é o meio para o conhecimento do Ser.
Om.
- Texto extraído do Informativo Vidyamandir, de março de 1992, do Vidya Mandir – Centro de Estudos de Vedanta e Sânscrito, do Rio de Janeiro, digitado por Cristiano Bezerra em 9 de fevereiro de 2003 e também publicado em yoga.pro.br. Visite o site do Vidya Mandir, da Professora Gloria Arieira (1953-), em vidyamandir.org.br [↩]
- Mumukshu: aquele que busca liberdade e felicidade (Nota da Autora) [↩]
- Vedas: antigos livros hindus de conhecimento (Nota da Autora) [↩]
- Shastras: denominação geral do conhecimento obtido nos Vedas (Nota da Autora) [↩]
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