Castigos e prêmios
Professor Hermógenes (1921-2015) (1)
É próprio do ser humano considerado social e psicologicamente “normal” agir em proveito próprio, no interesse do “eu” e dos “meus”. Há sempre nele uma indagação engatilhada – “quanto é que eu levo nisso?”.
Motivação é o termo técnico com que os psicólogos nomeiam “um conjunto de fatores, intrínsecos e extrínsecos (instintos, necessidades, impulsos, apetências, homeostase, libido e outras variáveis intervenientes) que determina a atividade persistente e dirigida para uma finalidade ou recompensa. Entre o fator variável e a finalidade (ou recompensa) situa-se o comportamento que a ela conduz…“.
O comportamento humano é sempre motivado, e a Ciência tem se empenhado em pesquisar sobre a motivação, procurando saber a natureza dessa fantástica força motriz que leva o homem a agir ou evitar agir. Foi a partir da tese do determinismo evolucionário de Darwin que o estudo começou. Da doutrina darwiniana partiram W. James e S. Freud para concluírem que é o instinto a força maior. Em McDougall já se encontra a explicação em termos de propósitos… Outras propostas de teoria para a motivação foram aparecendo: o impulso, o prazer, o ajustamento à realidade social… foram sendo apontados como os motivos predominantes.
Embora respeitáveis, nenhuma das teses conhecidas poderá, no entanto, explicar comportamentos como os de Sócrates de Atenas, Francisco de Assis, Vicente de Paulo, Madre Tereza de Calcutá, Joaquim José da Silva Xavier, Irmã Dulce de Salvador, Aurino Costa do Rio de Janeiro, Mahatma Gandhi da Índia, Albert Schweitzer da Alemanha, Bahá’U’Lláh do Irã e outros apóstolos da Verdade e do Amor. Como os cientistas materialistas explicariam, com suas teses sobre motivação, a conduta dos mártires cristãos na arena dos romanos? Como poderão entender como aquele que é Onipotente se deixou torturar nas masmorras dos romanos, nos escárnios dos fariseus, na morte infame do Gólgota? Que faz um ser evoluído se deixar imolar? Instinto?! Alguma necessidade biológica?! Impulso?! Alguma apetência?! Manutenção da estabilidade do meio interno orgânico (homeostase)?! Libido?! Inclinações “propositárias”?! Conveniências sociais?!
Será que os materialistas (e alguns racionalistas) ainda não tentaram encontrar, em suas “teses científicas”, uma resposta a tais questionamentos? Ou pesquisaram, mas, concluindo que seriam forçados a contradizer suas famosas doutrinas, optaram por uma fuga ao desafio, no velho estilo: “deixa isso pra lá!”?
A ortodoxia científica não terá como contestar uma evidência que a experiência impõe e nos permite dizer: na alma há motivos sublimes, muito acima dos motivos próprios da horizontalidade dos homens “normais”. Foram tais motivos que levaram sábios e santos a se conduzirem de modo tão discrepante e até mesmo contrário àquilo que os cientistas entendem como sendo a normalidade humana.
O instinto de conservação é normalmente humano, na medida em que só se vê no homem um animal. Um santo ou um sábio, que se recusa a matar mesmo em “legítima defesa” e mesmo prefere morrer a matar, é tido por estranho (anormal?!), mas clamam veementemente aos teóricos: “Há valores e motivos bem mais altos que o instinto de conservação“.
O instinto de reprodução, ou o princípio do prazer (Freud), é um forte e mesmo dominante motivo humano. No entanto, quando um jovem brahmacharya, isto é, um estudioso da Realidade Divina, embora eroticamente válido, com sublimação e compreensão, e, portanto, sem repressão, se mantém abstêmio de sexo, pode dizer, com autoridade, a Freud: “Eu sou movido por valores e motivos que estão muito além do princípio do prazer“.
O equívoco dos pesquisadores materialistas parece ter sido que seus estudos, predominantemente, foram feitos sobre pessoas primitivas ou (e) perturbadas ou (e) enfermas, e a partir de suas observações e experimentações (metodologicamente, até certo ponto, corretas), violentando um princípio epistemológico, estenderam suas conclusões ao ser humano em geral, ignorando os Sãos e os Santos. É verdade – e eles efetivamente descobriram – que indivíduos primitivos, perturbados e enfermos ou, até certo ponto, indivíduos medíocres, vivendo ainda quase no reino animal, agem por instinto; são impelidos por impulsos; se entregam ao império de suas necessidades; obedecem a apetências; curtem ou padecem a libido; ou, numa hipótese melhor, buscando “ajustar-se” à “realidade social de seu tempo”, se submetem ao processo massificante ou mesmificante do grupo no qual se enturmam.
Aos psicólogos Jung, Frankl, Fromm e outros, lúcidos e não comprometidos com o dogma materialista, nossa homenagem. A eles não cabem as observações acima propostas. Eles não se ativeram às aparências; não reduziram o campo de suas pesquisas à mediocridade e à patologia humanas, mas mergulharam em realidades sublimes da alma, que nem a todos é dado vislumbrar. Suas sábias teses servem de base a suas eficientes terapias, que estão aí, ajudando os seres humanos a superar as tristes fronteiras obsedantes da doença e da horizontalidade.
Nos meios científicos ocidentais, os estudos sobre a motivação humanas são recentes, isto é, do século XIX. Na Índia, há milênios, os sábios (rishis) postularam que os seres humanos são almas (Jivas) empenhadas no processo da evolução. Não da evolução conforme conceituada por Darwin, que a descreveu como mudanças que se processam na forma anátomo-fisiológica, mas nas mudanças que se passam na consciência. O evolucionismo na consciência, que é destino e desafio às almas todas, é que determina o evolucionismo na forma. À medida que a consciência se amplia, precisa de formas mais aprimoradas, que lhe permitam os movimentos para uma expansão maior; para expressar e gozar um grau maior de liberdade.
Dentro do que poderíamos chamar de “reino humano”, almas há que estão à frente, no rumo do Objetivo Maior. Outras, atrasadas, com uma pobre consciência ainda cativa nas formas grosseiras, têm muito ainda que avançar.
Quem não vê diferenças profundas entre um sábio e um homem rude; entre um santo e um corrupto, um terrorista, um traficante de drogas?
Conforme a amplitude de sua consciência, isto é, conforme seu nível evolutivo, um homem pode ser motivado pelo Amor e atraído para a Paz, para a Beleza, para a Verdade, para a Libertação; um outro, motivado pelo egoísmo, e seduzido pelo dinheiro, pelas altas posições sociais, pela curtição erótica…
Segundo os Mestres hindus, em sua evolução, as almas atravessam duas fases bem nítidas:
1) Na primeira, enquanto primitiva e medíocre, as motivações predominantes na alma, parecidas com aquelas de que os cientistas se aproximaram de caracterizar, são três: poder, gozo e status social. Elas impelem o indivíduo a sobreviver, se expandir, se impor, se gratificar a qualquer custo, mesmo em detrimento do mundo e de Deus. É a fase em que a alma é presa de uma “doença”, que me acostumei a chamar “egosclerose” pois, com o ego pessoal hipertrofiado, todos os talentos são empenhados na promoção, no fortalecimento e no império do mesmo. Assim se expressa um indivíduo “egosclerosado”: “Eu quero, eu posso, e vou tomar tudo para mim. Eu quero, eu posso e vou gozar prazeres ainda maiores e mais intensos. Eu estou numa religião (partido, doutrina, nação, escola de samba, time de futebol…) que é o máximo e que é a (o) única (o) que merece prevalecer. Eu quero, eu posso, e vou explorar e dominar todos… Eu sou o mais inteligente, mais bonito, mais forte, mais brilhante, mais merecedor… Eu ganho na corrida, na força, na esperteza… Eu mereço e vou crescer cada vez mais…”. São tais pessoas que atraem a si grandes dores e geram os sofrimentos maiores da família humana. Nessa primeira fase, quando a alma se auto-afirma, fase da conquista e crescimento ilusórios e neuróticos, os motivos, segundo a lição dos sábios (rishis), são, em resumo:
a. Kama – desejo de prazer sensual, material, mundanal;
b. Artha – o desejo de poder, sob todas as suas formas (econômico, político, parapsíquico ou mental);
c. Dharma – o desejo de se manter e se sentir segura, mediante aceitar o dever (social e religioso) conforme proposto por homens do mundo para homens do mundo.
2) Em sua segunda fase, a alma, já amadurecida pela experiência e curtida pela dor, já plenamente convencida sobre a impermanência do prazer, do poder, das boas posições sociais, inspirada pela Sabedoria, tendo já escutado a sábia “voz que clama no deserto”, tendo já o vislumbre de sua unidade real com todos, com tudo, comungando com a Luz, consegue ver seu egoísmo (o sentir-se distante e diferente do Todo) como o obstáculo que a mantém exilada da Suprema Felicidade. Nessa fase, a alma começa a com-doer-se do sofrimento mundanal, começa a com-padecer-se da dor do próximo, e vê que o ego-separatista, movido por suas motivações inferiores, é a causa do drama universal. Agora, só uma força a motiva: a Libertação. Essa dependerá de autonegação ou abnegação, que a levará a sacrificar a Deus e sacrificar-se pelos filhos de Deus.
A motivação da fase de renúncia (vairagya), é, segundo os sábios (rishis):
d. Moksha – Libertação.
Libertação – de quê?!
Da ignorância, do sofrimento, da morte e da “obrigatoriedade de renascer“.
Em sua primeira fase, a alma é um indefeso joguete atirado à voragem dos opostos existenciais. O prazer a fascina e ela é levada ao gozo quimérico. Cessado o gozo – e sempre cessa! – se sente infeliz. Servidão e dor, orgasmos e lágrimas, pequenas conquistas e perdas dramáticas… Enquanto egocentrada, isto é, alienada de Deus-Uno-Sem-Segundo, a alma é frágil e vacilante, iludida e padecente. Em seu cativeiro, a alma é levada a nascer, a morrer, a re-nascer, a re-morrer…
É renunciando e sacrificando que a alma pode retornar à sua origem e identificar-se com o Uno-Bem-Aventurado-Ser, libertando-se definitivamente. O único meio de uma alma alcançar Moksha (a Libertação) é a abnegação, ou humildação ou minimização do ego pessoal.
Quando um ser humano se deixa imolar e morre com um hino nos lábios, doçura na mente e paz no coração, é que, evoluindo na segunda fase, já não lhe importa a existência, pois já saboreia a Divina Essência.
Tudo isso continua um absurdo aos olhos dos egoístas. Continua estranho aos pesquisadores “cientistas”.
Ora, se estou aqui alertando você (e por que não a mim também?!) sobre as responsabilidades que nos pesam como gerentes dos dons que Deus em nós investiu, não é pretendendo apelar para o medo ao “pranto e ranges de dentes”, castigo inevitável ao administrador negligente ou doloso. O medo não é uma motivação desejável nem digna.
Também não desejo fazer apelo ao prêmio concedido ao “servo bom e fiel”, que consiste em receber mais talentos e maior confiança do Senhor. É, sem dúvida, uma nobre motivação.
Preferível, no entanto, a evitar castigo e ganhar prêmio, é a motivação da fase segunda – a Libertação.
Conduzir-se como “servo bom e fiel” é condição a entrar na iniciação, isto é, na segunda fase da evolução. A motivação predominante, numa alma evoluindo na segunda fase, é fazer render os bens confiados e corresponder, portanto, à confiança do Investidor. É assim que castigos não a amedrontam. Nem prêmios a seduzem. E o resultado disso é Moksha, a Libertação. É o ego-pessoal que, para se salvar, foge dos castigos e ambiciona prêmios. Se uma onda do mar for verdadeiramente sábia, só terá por motivação seu retorno ao Mar, seu identificar-se com o Mar, seu libertador sumir no Mar.
Mas… que há um castigo certo para o “servo mau e infiel”, isso há mesmo. Se não, o Mestre não teria mencionado as “trevas exteriores”. Se assim não fosse, onde a Justiça?!
“Tudo o que o homem semear, isso também colherá” – disse São Paulo, expressando o que os hindus chamam de “Lei do Karma“.
Conforme nosso karma (ação, comportamento, conduta) de agora, tal virá a ser nosso destino. Hoje, nosso destino é aquele que andamos programando mediante nosso agir no passado. Nossa conduta é um rígido decreto, que nos condena a penar ou nos permite curtir – tal é a Lei.
A Lei do Karma é tão válida e inexorável, tão precisa e certa, como qualquer das leis da Biologia, Física ou Química. É tão lei quanto a da gravidade, por exemplo.
É habitual e fácil driblar as leis humanas. Há muitos truques que são manipulados pelos “espertos” deste mundo. Mas não se iludam eles. As penas kármicas os alcançarão e os farão pagar “até o último ceitil“. As consequências do karma – agradáveis ou desagradáveis, isto é, prêmios e castigos – seguirão nossos atos tal qual, como disse Buddha, as rodas do carro perseguem as patas do boi que o puxa. Segundo a Lei-do-Karma, ninguém sofre sem culpa e ninguém goza sem mérito. A sanção é rigorosamente justa e inevitável.
Embora consiga distrair-se com suas gratificações sensuais e com a ilusão de que é poderoso e importante na escala social (colunável, aplaudível, magistrável, reitorável, prefeitável…), o homem-ego realmente não sabe o que seja Felicidade. Apenas distrai-se gozando, e se supõe feliz. Acredita ser proprietário, e assim se sente forte. Bem situado no society, se julga importante. No entanto, quando sobrevém um desastre, quando só e desiludido sobre suas agradáveis quimeras, cai em depressão, se vê desamparado (derrubável, adoecível, fenecível, arruinável, miserável, defuntável…). Em meu modo de ver, é isso que se pode chamar “trevas exteriores”, em contraste com a “Luz interior“.
O homem só conseguirá saber o que seja “Luz interior” onde, em vez de “choro e ranger de dentes”, se desfruta a Paz, “no gozo do Senhor”, mediante dedicação, abnegação, autodoação, renúncia, humildação e boa gerência dos talentos.
E o Senhor tem ainda uma recomendação que nos convém cumprir: “Assim também vós, todas as vezes que tiverdes cumprido todas as ordens, dizei: somos servos inúteis, (pois) fizemos apenas o que devíamos fazer” (Lucas, 17:10).
» por É próprio do ser humano considerado social e psicologicamente “normal” agir em proveito próprio, no interesse do “eu” e dos “meus”. Há sempre nele uma indagação engatilhada – “quanto é que eu levo nisso?”.
Motivação é o termo técnico com que os psicólogos nomeiam “um conjunto de fatores, intrínsecos e extrínsecos (instintos, necessidades, impulsos, apetências, homeostase, libido e outras variáveis intervenientes) que determina a atividade persistente e dirigida para uma finalidade ou recompensa. Entre o fator variável e a finalidade (ou recompensa) situa-se o comportamento que a ela conduz…“.
O comportamento humano é sempre motivado, e a Ciência tem se empenhado em pesquisar sobre a motivação, procurando saber a natureza dessa fantástica força motriz que leva o homem a agir ou evitar agir. Foi a partir da tese do determinismo evolucionário de Darwin que o estudo começou. Da doutrina darwiniana partiram W. James e S. Freud para concluírem que é o instinto a força maior. Em McDougall já se encontra a explicação em termos de propósitos… Outras propostas de teoria para a motivação foram aparecendo: o impulso, o prazer, o ajustamento à realidade social… foram sendo apontados como os motivos predominantes.
Embora respeitáveis, nenhuma das teses conhecidas poderá, no entanto, explicar comportamentos como os de Sócrates de Atenas, Francisco de Assis, Vicente de Paulo, Madre Tereza de Calcutá, Joaquim José da Silva Xavier, Irmã Dulce de Salvador, Aurino Costa do Rio de Janeiro, Mahatma Gandhi da Índia, Albert Schweitzer da Alemanha, Bahá’U’Lláh do Irã e outros apóstolos da Verdade e do Amor. Como os cientistas materialistas explicariam, com suas teses sobre motivação, a conduta dos mártires cristãos na arena dos romanos? Como poderão entender como aquele que é Onipotente se deixou torturar nas masmorras dos romanos, nos escárnios dos fariseus, na morte infame do Gólgota? Que faz um ser evoluído se deixar imolar? Instinto?! Alguma necessidade biológica?! Impulso?! Alguma apetência?! Manutenção da estabilidade do meio interno orgânico (homeostase)?! Libido?! Inclinações “propositárias”?! Conveniências sociais?!
Será que os materialistas (e alguns racionalistas) ainda não tentaram encontrar, em suas “teses científicas”, uma resposta a tais questionamentos? Ou pesquisaram, mas, concluindo que seriam forçados a contradizer suas famosas doutrinas, optaram por uma fuga ao desafio, no velho estilo: “deixa isso pra lá!”?
A ortodoxia científica não terá como contestar uma evidência que a experiência impõe e nos permite dizer: na alma há motivos sublimes, muito acima dos motivos próprios da horizontalidade dos homens “normais”. Foram tais motivos que levaram sábios e santos a se conduzirem de modo tão discrepante e até mesmo contrário àquilo que os cientistas entendem como sendo a normalidade humana.
O instinto de conservação é normalmente humano, na medida em que só se vê no homem um animal. Um santo ou um sábio, que se recusa a matar mesmo em “legítima defesa” e mesmo prefere morrer a matar, é tido por estranho (anormal?!), mas clamam veementemente aos teóricos: “Há valores e motivos bem mais altos que o instinto de conservação“.
O instinto de reprodução, ou o princípio do prazer (Freud), é um forte e mesmo dominante motivo humano. No entanto, quando um jovem brahmacharya, isto é, um estudioso da Realidade Divina, embora eroticamente válido, com sublimação e compreensão, e, portanto, sem repressão, se mantém abstêmio de sexo, pode dizer, com autoridade, a Freud: “Eu sou movido por valores e motivos que estão muito além do princípio do prazer“.
O equívoco dos pesquisadores materialistas parece ter sido que seus estudos, predominantemente, foram feitos sobre pessoas primitivas ou (e) perturbadas ou (e) enfermas, e a partir de suas observações e experimentações (metodologicamente, até certo ponto, corretas), violentando um princípio epistemológico, estenderam suas conclusões ao ser humano em geral, ignorando os Sãos e os Santos. É verdade – e eles efetivamente descobriram – que indivíduos primitivos, perturbados e enfermos ou, até certo ponto, indivíduos medíocres, vivendo ainda quase no reino animal, agem por instinto; são impelidos por impulsos; se entregam ao império de suas necessidades; obedecem a apetências; curtem ou padecem a libido; ou, numa hipótese melhor, buscando “ajustar-se” à “realidade social de seu tempo”, se submetem ao processo massificante ou mesmificante do grupo no qual se enturmam.
Aos psicólogos Jung, Frankl, Fromm e outros, lúcidos e não comprometidos com o dogma materialista, nossa homenagem. A eles não cabem as observações acima propostas. Eles não se ativeram às aparências; não reduziram o campo de suas pesquisas à mediocridade e à patologia humanas, mas mergulharam em realidades sublimes da alma, que nem a todos é dado vislumbrar. Suas sábias teses servem de base a suas eficientes terapias, que estão aí, ajudando os seres humanos a superar as tristes fronteiras obsedantes da doença e da horizontalidade.
Nos meios científicos ocidentais, os estudos sobre a motivação humanas são recentes, isto é, do século XIX. Na Índia, há milênios, os sábios (rishis) postularam que os seres humanos são almas (Jivas) empenhadas no processo da evolução. Não da evolução conforme conceituada por Darwin, que a descreveu como mudanças que se processam na forma anátomo-fisiológica, mas nas mudanças que se passam na consciência. O evolucionismo na consciência, que é destino e desafio às almas todas, é que determina o evolucionismo na forma. À medida que a consciência se amplia, precisa de formas mais aprimoradas, que lhe permitam os movimentos para uma expansão maior; para expressar e gozar um grau maior de liberdade.
Dentro do que poderíamos chamar de “reino humano”, almas há que estão à frente, no rumo do Objetivo Maior. Outras, atrasadas, com uma pobre consciência ainda cativa nas formas grosseiras, têm muito ainda que avançar.
Quem não vê diferenças profundas entre um sábio e um homem rude; entre um santo e um corrupto, um terrorista, um traficante de drogas?
Conforme a amplitude de sua consciência, isto é, conforme seu nível evolutivo, um homem pode ser motivado pelo Amor e atraído para a Paz, para a Beleza, para a Verdade, para a Libertação; um outro, motivado pelo egoísmo, e seduzido pelo dinheiro, pelas altas posições sociais, pela curtição erótica…
Segundo os Mestres hindus, em sua evolução, as almas atravessam duas fases bem nítidas:
1) Na primeira, enquanto primitiva e medíocre, as motivações predominantes na alma, parecidas com aquelas de que os cientistas se aproximaram de caracterizar, são três: poder, gozo e status social. Elas impelem o indivíduo a sobreviver, se expandir, se impor, se gratificar a qualquer custo, mesmo em detrimento do mundo e de Deus. É a fase em que a alma é presa de uma “doença”, que me acostumei a chamar “egosclerose” pois, com o ego pessoal hipertrofiado, todos os talentos são empenhados na promoção, no fortalecimento e no império do mesmo. Assim se expressa um indivíduo “egosclerosado”: “Eu quero, eu posso, e vou tomar tudo para mim. Eu quero, eu posso e vou gozar prazeres ainda maiores e mais intensos. Eu estou numa religião (partido, doutrina, nação, escola de samba, time de futebol…) que é o máximo e que é a (o) única (o) que merece prevalecer. Eu quero, eu posso, e vou explorar e dominar todos… Eu sou o mais inteligente, mais bonito, mais forte, mais brilhante, mais merecedor… Eu ganho na corrida, na força, na esperteza… Eu mereço e vou crescer cada vez mais…”. São tais pessoas que atraem a si grandes dores e geram os sofrimentos maiores da família humana. Nessa primeira fase, quando a alma se auto-afirma, fase da conquista e crescimento ilusórios e neuróticos, os motivos, segundo a lição dos sábios (rishis), são, em resumo:
a. Kama – desejo de prazer sensual, material, mundanal;
b. Artha – o desejo de poder, sob todas as suas formas (econômico, político, parapsíquico ou mental);
c. Dharma – o desejo de se manter e se sentir segura, mediante aceitar o dever (social e religioso) conforme proposto por homens do mundo para homens do mundo.
2) Em sua segunda fase, a alma, já amadurecida pela experiência e curtida pela dor, já plenamente convencida sobre a impermanência do prazer, do poder, das boas posições sociais, inspirada pela Sabedoria, tendo já escutado a sábia “voz que clama no deserto”, tendo já o vislumbre de sua unidade real com todos, com tudo, comungando com a Luz, consegue ver seu egoísmo (o sentir-se distante e diferente do Todo) como o obstáculo que a mantém exilada da Suprema Felicidade. Nessa fase, a alma começa a com-doer-se do sofrimento mundanal, começa a com-padecer-se da dor do próximo, e vê que o ego-separatista, movido por suas motivações inferiores, é a causa do drama universal. Agora, só uma força a motiva: a Libertação. Essa dependerá de autonegação ou abnegação, que a levará a sacrificar a Deus e sacrificar-se pelos filhos de Deus.
A motivação da fase de renúncia (vairagya), é, segundo os sábios (rishis):
d. Moksha – Libertação.
Libertação – de quê?!
Da ignorância, do sofrimento, da morte e da “obrigatoriedade de renascer“.
Em sua primeira fase, a alma é um indefeso joguete atirado à voragem dos opostos existenciais. O prazer a fascina e ela é levada ao gozo quimérico. Cessado o gozo – e sempre cessa! – se sente infeliz. Servidão e dor, orgasmos e lágrimas, pequenas conquistas e perdas dramáticas… Enquanto egocentrada, isto é, alienada de Deus-Uno-Sem-Segundo, a alma é frágil e vacilante, iludida e padecente. Em seu cativeiro, a alma é levada a nascer, a morrer, a re-nascer, a re-morrer…
É renunciando e sacrificando que a alma pode retornar à sua origem e identificar-se com o Uno-Bem-Aventurado-Ser, libertando-se definitivamente. O único meio de uma alma alcançar Moksha (a Libertação) é a abnegação, ou humildação ou minimização do ego pessoal.
Quando um ser humano se deixa imolar e morre com um hino nos lábios, doçura na mente e paz no coração, é que, evoluindo na segunda fase, já não lhe importa a existência, pois já saboreia a Divina Essência.
Tudo isso continua um absurdo aos olhos dos egoístas. Continua estranho aos pesquisadores “cientistas”.
Ora, se estou aqui alertando você (e por que não a mim também?!) sobre as responsabilidades que nos pesam como gerentes dos dons que Deus em nós investiu, não é pretendendo apelar para o medo ao “pranto e ranges de dentes”, castigo inevitável ao administrador negligente ou doloso. O medo não é uma motivação desejável nem digna.
Também não desejo fazer apelo ao prêmio concedido ao “servo bom e fiel”, que consiste em receber mais talentos e maior confiança do Senhor. É, sem dúvida, uma nobre motivação.
Preferível, no entanto, a evitar castigo e ganhar prêmio, é a motivação da fase segunda – a Libertação.
Conduzir-se como “servo bom e fiel” é condição a entrar na iniciação, isto é, na segunda fase da evolução. A motivação predominante, numa alma evoluindo na segunda fase, é fazer render os bens confiados e corresponder, portanto, à confiança do Investidor. É assim que castigos não a amedrontam. Nem prêmios a seduzem. E o resultado disso é Moksha, a Libertação. É o ego-pessoal que, para se salvar, foge dos castigos e ambiciona prêmios. Se uma onda do mar for verdadeiramente sábia, só terá por motivação seu retorno ao Mar, seu identificar-se com o Mar, seu libertador sumir no Mar.
Mas… que há um castigo certo para o “servo mau e infiel”, isso há mesmo. Se não, o Mestre não teria mencionado as “trevas exteriores”. Se assim não fosse, onde a Justiça?!
“Tudo o que o homem semear, isso também colherá” – disse São Paulo, expressando o que os hindus chamam de “Lei do Karma“.
Conforme nosso karma (ação, comportamento, conduta) de agora, tal virá a ser nosso destino. Hoje, nosso destino é aquele que andamos programando mediante nosso agir no passado. Nossa conduta é um rígido decreto, que nos condena a penar ou nos permite curtir – tal é a Lei.
A Lei do Karma é tão válida e inexorável, tão precisa e certa, como qualquer das leis da Biologia, Física ou Química. É tão lei quanto a da gravidade, por exemplo.
É habitual e fácil driblar as leis humanas. Há muitos truques que são manipulados pelos “espertos” deste mundo. Mas não se iludam eles. As penas kármicas os alcançarão e os farão pagar “até o último ceitil“. As consequências do karma – agradáveis ou desagradáveis, isto é, prêmios e castigos – seguirão nossos atos tal qual, como disse Buddha, as rodas do carro perseguem as patas do boi que o puxa. Segundo a Lei-do-Karma, ninguém sofre sem culpa e ninguém goza sem mérito. A sanção é rigorosamente justa e inevitável.
Embora consiga distrair-se com suas gratificações sensuais e com a ilusão de que é poderoso e importante na escala social (colunável, aplaudível, magistrável, reitorável, prefeitável…), o homem-ego realmente não sabe o que seja Felicidade. Apenas distrai-se gozando, e se supõe feliz. Acredita ser proprietário, e assim se sente forte. Bem situado no society, se julga importante. No entanto, quando sobrevém um desastre, quando só e desiludido sobre suas agradáveis quimeras, cai em depressão, se vê desamparado (derrubável, adoecível, fenecível, arruinável, miserável, defuntável…). Em meu modo de ver, é isso que se pode chamar “trevas exteriores”, em contraste com a “Luz interior“.
O homem só conseguirá saber o que seja “Luz interior” onde, em vez de “choro e ranger de dentes”, se desfruta a Paz, “no gozo do Senhor”, mediante dedicação, abnegação, autodoação, renúncia, humildação e boa gerência dos talentos.
E o Senhor tem ainda uma recomendação que nos convém cumprir: “Assim também vós, todas as vezes que tiverdes cumprido todas as ordens, dizei: somos servos inúteis, (pois) fizemos apenas o que devíamos fazer” (Lucas, 17:10).
Leia na sequência:
Introdução do livro Deus investe em você
Deus investe em você
A prece do bom administrador
Castigos e prêmios
- Texto extraído das páginas 24 a 31 da 1ª edição, de 1985, do livro Deus investe em você, do Professor Hermógenes (1921-2015), digitado por Cristiano Bezerra em 20 de setembro de 2001 e também publicado em yoga.pro.br. Visite o site do Instituto Hermógenes em institutohermogenes.com.br [↩]
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