A teoria da invasão ariana é um trote
Este extenso artigo, extraído das páginas 87 a 102 do livro História do Yoga, de Pedro Kupfer, explica o como e o porque da teoria da invasão ariana na Índia, e as implicações políticas que traz para um praticante de Yoga deste século o fato de aceitar passivamente essa informação mentirosa. Pense no que está escrito aqui e lembre que nenhum mestre de Yoga indiano jamais aceitou essa versão da história, nefasta para a cultura em que nasceu o Yoga.
I – A questão das origens
Faz cem anos que indianos e ocidentais discutem sobre as origens da civilização do Indus. É obvio que nunca chegaram a um consenso. Uma das consequências dessa situação é que, até hoje, essa cultura não possui um nome próprio. Identifica-se pelo nome de um rio que ainda hoje está vivo, o Indus, e pelo nome de um rio que secou: o Sarasvati. Ou, por extensão, pelo nome de uma das suas mais importantes cidades, Harappa. Ou ainda se atribui a ela o patronímico do seu mais conhecido legado, védico. Todavia, em escritos de civilizações coetâneas, como a dos acádios, aparece identificada com o nome de Meluhha. Seja qual for o seu nome correto, é significativo que ainda hoje não se tenha chegado a um acordo. Porque o nome é a identidade e, furtar essa identidade implica agregar outra dificuldade à questão das origens.
Entretanto, não falta muito para esclarecer esses pontos. Até o momento em que este livro está sendo escrito (maio de 1997) o ritmo dos achados arqueológicos continua desenterrando novos testemunhos dessa identidade. O avanço na decifração da sua escrita afirmou-se também de forma definitiva ao vinculá-la incontestavelmente com os velhos Shastras. O denominador comum de todos essas contribuições recentes é o de serem feitas pelos próprios indianos. Boa lição para nós.
1) As duas visões da História
“Num mundo onde caíram mais ou menos as cortinas de ferro, ficam ainda em pé outras cortinas; estas, que não deixam ver desde fora as nossas realidades: a do industrialismo sofisticado, a do euro centrismo…”
Octávio Paz, Hombres en su siglo
Após o descobrimento de Mohenjo Daro na década de 1920, os historiadores europeus deram uma versão sobre a História da Índia que, hoje ficou demonstrado, é totalmente equivocada. Essa tese afirmava que a civilização do Indus-Sarasvati teria sido aniquilada pela invasão dos “bárbaros” arianos. Um período de escuridão teria sucedido este acontecimento e a civilização haveria retornado à Índia somente muito depois, pela mão de outros invasores: os gregos, comandados por Alexandre Magno, por volta de 330 a.C. Veremos as premissas sobre as quais se sustentava essa teoria, e depois como se acabou por demonstrar sua falsidade, de acordo com recentes achados arqueológicos e análise dos textos védicos.
O que os investigadores James Marshall e Sir Mortimer Wheeler fizeram na Índia não é senão a continuação da “tarefa” que vinha sendo feita por europeus e estadunidenses desde 1811 no Oriente Próximo. Karl Grinberg narra em sua Historia Universal (pp. 267 a 272) que as primeiras expedições arqueológicas foram feitas na Mesopotâmia. Alemães, franceses, ingleses e estadunidenses dividiram a região usando mapa e esquadro. Cada grupo que escavava, levava o que desenterrava para seus museus nacionais, como se tivessem algum tipo de droit de segnieur sobre a História, e não precisassem dar nenhuma satisfação aos países onde os objetos eram achados.
Assim, abasteceram-se os acervos dos maiores museus da Europa: o British, o Louvre, e o de Berlim. Por exemplo, toda a cultura, a religião e a história de Nínive, incluindo o registro do dilúvio e a epopeia de Gilgamesh, está contada na sua impressionante biblioteca de 20.000 tabuletas de argila cozida. Essa biblioteca foi literalmente roubada pelos ingleses durante a escavação do palácio real de Assurbanipal, e hoje pode apreciar-se no British Museum. Quem visita um desses museus mal suspeita as vicissitudes que sofreram as peças que os prestigiam com sua presença. Este modus operandi funcionou até bem entrado o século XX, e continua utilizando-se até o presente em alguns lugares da América Latina e África.
2) A teoria da invasão ariana
“Se você engole uma mentira, tem que engolir tudo o que vem junto com ela.”
Emerson, English traits
O que a tese da invasão ariana sustenta, in brief, é que tribos nômades bárbaras, provindas da estepe eurasiana, teriam penetrado por volta de 1500 a.C. pelo noroeste da Índia, arrasando a civilização que aí estava, escravizando os aborígenes e fazendo a cultura local regredir a formas larvais durante mais de mil anos.
A partir do final do século XIX, Max Müller, estudioso alemão, fundador da mitologia comparada e um dos primeiros especialistas em literatura sânscrita, começou a estabelecer uma associação entre comunidades linguísticas e grupos étnicos. Ele discursava com um certo tom romântico sobre a grande família ariana, falante do protoindo-europeu, matriz de todas as línguas vivas e mortas desde Oriente Médio até a Escandinávia e Portugal, que teria ocupado o território da Europa e da Ásia, impondo sua tecnologia e modus vivendi superior aos outros povos.
Como outros estudiosos da sua geração, passou anos tentando reconstruir essa proto-linguagem (Ursprache, em alemão), debruçado nos mapas e especulando sobre onde ficaria o lar original (Urheimat) desse povo. A ideia de hordas bárbaras cavalgando pela estepe, ocupando o continente e submetendo e arrasando a ferro e fogo todas as culturas que encontravam no caminho, fascinou os estudiosos do século XIX.
Vejamos sua própria opinião: “eles [os arianos] foram os protagonistas no grande drama da História, e elevaram até o mais alto grau todos os elementos da vida ativa de que a nossa natureza é dotada. (…) Em constante conflito entre si e com outras raças semíticas e turânias, essas nações arianas transformaram-se nas senhoras da História, e parece ser sua missão unir todas as partes do mundo pelas correntes da civilização, do comércio e da religião.” Infelizmente, essa teoria acabaria por desdobrar-se na funesta explosão racista a partir da qual deflagrou-se a II Guerra Mundial. No final da sua vida, percebeu o potencial explosivo e a temível distorção que haviam sofrido suas palavras e tentou retratar-se, mas já era tarde. Infelizmente, podemos considerá-lo um dos responsáveis morais pelo surgimento da onda racista na Europa.
“Hitler e o movimento nacional-socialista na Alemanha explorariam ao máximo, em sua injustificada reivindicação de uma “raça superior”, germânica, a descrição simplista das origens linguísticas pré-históricas da Europa, estabelecidas por autores como Gustav Kossina. A maioria dos arqueólogos da época ficaram consternados ao comprovar que, o que não passava de ser um punhado de teorias plausíveis sobre as línguas e culturas pré-históricas, convertia-se em propaganda militar da superioridade racial e reduzia-se ao absurdo com a destruição de milhões de seres humanos, supostamente pertencentes a outras “raças”, no holocausto.” Colin Renfrew, Arqueología y Lenguaje, p. 13.
É necessário separar a questão de linguagem, cultura e raça, das especulações que se possam fazer sobre elas, ou ainda do seu uso político ou filosófico, que deve ser totalmente descartado. O grande perigo é acreditar que uma raça possa ser genética ou culturalmente superior às demais. Aliás, a própria palavra raça precisaria ser revista, já que raça só existe uma: a humana. Biologicamente, essa raça humana divide-se em diversos grupos étnicos. Os árias, ou arianos, são o povo resultante da somatória de diversos grupos étnicos: o indo-europeu, o drávida, o proto-australóide e, em menor grau, o mongoloide, todos eles falantes de sânscrito arcaico. Quando dizemos ário, não estamos referindo-nos a um grupo étnico, muito menos àquela infaustamente célebre “raça” dita “superior”.
A noção racista da palavra ário constitui a mais abjeta perversão do significado original desse termo. Por árya, ou ariano, entende-se o grupo falante do sânscrito antigo, detentor do conhecimento dos Vedas. Significa nessa língua cultivado, e refere-se, em verdade, não a um grupo racial, nem mesmo à cultura falante dessa língua, senão a uma qualidade ou disposição ética: a da nobreza.
O Veda narra que Manu, o mítico progenitor da Humanidade, batizou com o nome Áryavarta a região ao sul dos Himalayas, que significa “moradia do povo nobre”. Os arianos estão diretamente vinculados com civilização. Segundo estudiosos como Dinesh Agrawal, S. P. Gupta, David Frawley e outros, existem hoje provas irrefutáveis da presença de protoindo-europeus na Índia desde a antiguidade mais remota. Os argumentos sobre os quais baseia-se essa tese revolucionária – já que implica uma nova visão da História indiana e mundial – vão desde evidências arqueológicas até a análise de textos literários e religiosos, principalmente os Vedas e os Puranas.
Em seu livro The Indus-Saraswati Civilization, o Dr. S. P. Gupta defere o golpe de graça contra a tese do seu mestre, o arqueólogo inglês Sir Mortimer Wheeler, que sustentava que o movimento civilizatório se deu a partir da Mesopotâmia. Gupta demonstra, através do estudo da evolução dos assentamentos comerciais, que foi exatamente ao contrário: esse movimento se deu de leste para oeste. O autor subordina toda conclusão ao achado arqueológico. Não concede um centímetro sequer à especulação. Apoia seus pés na arqueologia e dela extrai tudo o que precisa para interpretar o que vê. Não aceita nenhuma outra fonte de conhecimento (nem paleolinguística, nem paleoliteratura, nem paleografia) senão as evidências de campo.
Ele coloca, no livro acima citado, uma nova visão dessa cultura através das seguintes perguntas: se essa cultura teve uma origem agrícola, pastoril e montanhesa, o que pode ter unido o povo védico para organizar-se socialmente? O que pode tê-los motivado para criar um império tão fabuloso? Um império que, aliás, nem sequer tinha uma cabeça visível, uma administração central. Quais foram as prováveis rotas do seu comércio? Sobre que se apoiou esse comércio, qual foi a base que lhe deu suporte?
No quarto milênio antes da nossa era produziu-se uma mudança radical na direção da economia, que, de rural, passou a ser urbana. O primeiro lugar onde o comércio começou foi a região que vai desde o vale de Bolam (assentamentos de Mehrgarh e Nausharo) até o Gujarat (Dholavira). Esse comércio interno cresceu tão aceleradamente que acabou criando a necessidade de expandir suas fronteiras. As rotas terrestres eram muito utilizadas, tanto quanto as marítimas.
Encontram-se no Veda termos tais como vanijya (comércio), vaishya (comerciante), krinati (perda, quebra), que mostram claramente que o comércio fazia parte da vida quotidiana do povo védico. Há pelo menos quatorze maneiras diferentes de referir-se às casas no Veda, indicando que essa civilização era notoriamente urbana (lembre-se que os nômades não moram em casas). Ainda nessa mesma obra encontramos fartas referências ao mar (samudra), rios (sindhi), barcos, navegação, movimento de comerciantes, transações em moeda, pirataria e roubo de mercadorias (!), empréstimos, recursos minerais, domesticação do cavalo, indústria e vida cotidiana deste povo.
3) O que realmente aconteceu
“Uma nova verdade científica não triunfa por convencer seus opositores e fazê-los ver a verdade, mas sim porque esses opositores acabam morrendo e surge uma nova geração que tem familiaridade com ela.”
Max Planck, pioneiro da física quântica
As diferentes culturas desta região (Áryavarta) foram catalogadas como ensaios “provincianos”, “culturas de aldeia” e sem peso civilizatório para criar cultura. Contudo, hoje podemos vê-las como parte de um sistema cultural bem integrado que começa na tardia Idade da Pedra (c. 20.000 a.C., antes da última Glaciação) e vai até o final do neolítico.
Esse sistema surgiu e operou na região nos contrafortes do Kitab e dos montes Suleiman, e nas bacias dos rios Indus, Ravi, Chenab, Sutlej e Sarasvati, com todos seus tributários. Não se tratava então de culturas “sobrepostas” (overlap), sem relação entre si , senão de expressões de uma mesma civilização integrada num processo único.
Por exemplo, Mehrgarh, apresenta agricultura e domesticação de animais, que são as duas características mais claras do neolítico na região. Os registros de radio carbono indicam que o neolítico é pelo menos 1000 anos mais antigo na região em Mehrgarh que na Turkmênia e a Ásia Oriental, como supunham os historiadores de início de século. Esta cidade foi achada na década de 1970 na área de Baluquistão, no atual Paquistão. O trabalho de campo nela realizado, que data este sítio (usando o processo de radio carbono) entre 8215 e 7215 a.C., transformou totalmente os pontos de vista sobre esta civilização.
Mehrgarh mostrou a unidade de um processo de integração civilizadora. Resumindo, Piggot e Wheeler descreveram o período neolítico acerâmico (antes da cerâmica cozida) e as culturas calcolíticas (do cobre) na Índia como sendo descontínuos e autônomos, num processo de superposição cultural de povos que não possuíram conexão entre si.
Não obstante, estavam errados. Mehrgarh, que foi berço do neolítico mais antigo no continente, albergando igualmente outra sucessão de culturas posteriores, chegou a ser sem dúvida a maior e mais importante cidade da Antiguidade. Cinco vezes maior que sua contemporânea Çatal Hüyük, abrigava em 6000 a.C. pelo menos 25000 indivíduos, quase a população inteira do Egito daquela época.
Lembremos que isto aconteceu mais de 2000 anos antes dos sumérios se estabelecerem na planície entre os rios Eufrates e Tigre. Os teóricos do fim do século XIX afirmaram que a criação de gado fora introduzida pelos invasores arianos, na metade do segundo milênio a.C.
Novas evidências mostram-nos que os habitantes de Mehrgarh foram os primeiros em criar gado na Ásia Ocidental, além de cultivar cevada, trabalhar o cobre, comerciar com regiões vizinhas e produzir cerâmica. Temos fortes indícios que vinculam este povo com a cultura védica.
A recentemente descoberta cidade de Dholavira, numa pequena ilha perto da fronteira com o Paquistão, surge como um dos cinco mais importantes sítios arqueológicos achados até o presente momento. As escavações começaram em 1990, mas ainda estão sendo encontrados indícios que ligam a cultura védica com a civilização do Indus-Sarasvati. Por exemplo, em março de 1997, o arqueólogo R. S. Bisht e sua equipe fizeram uma surpreendente descoberta: acharam a primeira estátua do proto-Shiva itifálico, belamente esculpida, que mostra que o culto deste deus já estava muito estendido na época.
As únicas evidências que se tinham até o presente sobre a presença do deus-yogi eram três selos de esteatita achados em Mohenjo Daro, no atual nordeste do Paquistão. Isso, somado ao fato de Dholavira ser uma cidade que apresenta o traçado típico da cultura védica, é mais uma prova que vincula essas duas tradições.
Na estrutura da cidade distinguimos o sistema trimeshtin, de planejamento urbano em forma concêntrica (veshtha = concêntrico). O Sulba Sútra, manual de construção de altares do culto ao fogo, que fala também da construção de cidades, menciona as três partes que uma urbe deve ter: alta, média e baixa. A razão nas proporções da cidade é constante, sempre de 5:4. Este padrão aparece nas três partes da cidade.
A história da cidade estende-se de 2900 a.C. a 1500 d.C. O descobrimento na década de 1980 das cidades de Dwáraka e Bet Dwáraka pelo renomado arqueólogo S. R. Rao e o Instituto de Oceanografia da Índia, submersas no mar Arábico frente à costa de Gujarat, demonstram a continuidade dessa cultura, elucidando o que se chamou de idade escura da história indiana, aquele longo período que transcorreu entre o desaparecimento das cidades do Indus e a chegada dos primeiros visitantes gregos.
A idade destas duas cidades, que mostram semelhanças surpreendentes com Mohenjo Daro e Harappa, situa-se entre 3000 e 1500 a.C. Esse achado demonstra e confirma a autenticidade e a antiguidade dos eventos narrados no Mahabharata. “O mais extraordinário achado da arqueologia indiana é que não há quebra visível na série de desenvolvimentos culturais de Mehrgarh a Harappa e à Índia moderna. O conjunto das implicações desta descoberta está ainda por ser captado. Quando for finalmente entendido, provavelmente estaremos prontos para enxergar a História antiga e a evolução da civilização humana com novos olhos.” Feuerstein, Kak e Frawley, In Search of the Cradle of Civilization, p. 152.
II – A questão do final
4) Cataclismo e reconstrução
O verdadeiro motivo do desaparecimento dos harappianos não foi a invasão ariana, como acreditaram os estudiosos do século XIX, já que tal invasão jamais aconteceu. Alguém poderia argumentar que essa é a versão dos vencedores, que os Vedas foram escritos pelos invasores e que isso não passa de uma manobra política pró-aria. A força dos paradigmas é tão incrível que, às vezes, nos impede até mesmo de reconhecer as constatações da própria realidade. Não se trata mais de uma teoria confrontada com outra, mas de uma teoria, hoje notadamente inconsistente, confrontada com os fatos.
Para responder essa pergunta, preferimos nos remeter às evidências que a ciência nos mostra. Ignorar certos fatos é tirar da Índia o direito de ser reconhecida como berço de uma das maiores civilizações do mundo antigo. Eis aqui um exemplo da visão preconceituosa e eurocentrista: “Uma civilização como a do Indus não pode conceber-se como um fenômeno de crescimento lento e paciente. As suas vitórias, tal como seus problemas, foram de tipo repentino; e a nossa procura de uma ancestralidade material e sistemática para a civilização do Indus pode ser uma longa e sutil procura e, afinal, de importância secundária.” Sir Mortimer Wheeler, O Vale do Indus, p. 64.
Aqui Sir Mortimer desestima o que para indianos e paquistaneses é tão importante: a própria identidade nacional. Sabemos hoje que a verdade não é bem assim. Esse esquema somente entra nas cabeças dos intelectuais. A nova geração de jovens arqueólogos indianos busca a existência de vida urbana na Índia em épocas antes insuspeitas. Para isso, não lhe interessam os artefatos, os catálogos ou até mesmo as medições do tempo. A diferença com os europeus do tempo da ocupação inglesa é notória, porque estes partem do pressuposto de que os harappianos são tributários das civilizações mesopotâmica e egípcia e reduzem sua função como historiadores a catalogar artefatos, estimando sua datação.
Colin Renfrew, historiador e catedrático de arqueologia na Universidade de Cambridge, mostra coragem ao revelar o que está por trás dessa forma tendenciosa de contar a História: “A forma habitual de pensar os grupos humanos, de assumir que é correto diferenciá-los como “povos” separados, é em grande medida um legado do século XIX. Em certa medida, deriva dos historiadores e geógrafos clássicos, que tendem a acreditar que seus próprios conceitos de etnicidade ou de “nação” independente podiam facilmente projetar-se àquelas outras terras, às vezes remotas, que estavam descrevendo. No século XIX e também antes, os viajantes europeus adotaram, em muitos aspectos, uma visão muito parecida à dos clássicos sobre esse “outro mundo”, além do próprio. Além do mundo civilizado haviam terras estranhas, povoadas por tribos bárbaras, de fala rude, que era necessário classificar, nomear, dividir em grupos para poder, de alguma forma, etiquetá-los e, por conseguinte, manipular e, evidentemente, governar.” Arqueología y Linguaje, p. 229.
Estudos recentes feitos a partir de imagens do Landsat (satélite de observação terrestre que registra a radiação eletromagnética refletida pela Terra) revelam três catástrofes meteorológicas e geomorfológicas que abalaram definitivamente essa civilização: inundações sucessivas na bacia do rio Indus; uma seca de 300 anos que esgotou o Sarasvati por volta do ano 1900 a.C. e mudou irreversivelmente o curso de vários outros; e transformações bruscas e de grande amplitude na crosta terrestre na região.
Cerca de 75% dos sítios arqueológicos harappianos (foram descobertos mais de 2500!) encontram-se ao longo do leito seco do rio Sarasvati, que foi identificado como um dos mais caudalosos do continente eurasiático, havendo tido um papel importantíssimo no desenvolvimento da civilização védica. Antigamente esse rio recebia as águas do Ganges, do Yamuna e do Sutlej, cujos cursos eram muito diferentes dos atuais.
Aparecem no Rig Veda nada menos que sessenta menções a esse rio, enquanto o Ganges é mencionado apenas uma vez. A pergunta é: por que não pôde um império tão rico se sustentar? Terá a sua ruína sido provocada pelo homem ou pela Natureza? Entre as causas climáticas menciona-se a grande seca, provavelmente de mais de trezentos anos, que aconteceu no início do segundo milênio a.C.
Também aconteceram profundas transformações hidrográficas na área devido ao avanço da placa tectônica indiana sobre a iraniana, a arábica e a eurasiática, em direção ao Himalaya, o que provocou o desaparecimento do rio Sarasvati e inversão no curso de outros, assim como também diversos terremotos e ondas sísmicas que semearam a destruição na bacia desses rios e na região costeira.
Como a seca afetou a estrutura econômica das cidades? Declinação urbana significa igualmente queda da rede econômica que sustenta a própria vida urbana com todas suas instituições. Porém, um império não pode cair num dia só. A emigração destas populações deu-se aos poucos, em pequenos grupos que se deslocavam rapidamente, levando consigo sua cultura e suas riquezas, e que acabaram estabelecendo-se na planície gangética.
Não migraram acossados pela fome ou a necessidade, mas procurando um novo espaço para viver. Comprovou-se que esta emigração rápida não implicou uma diminuição da população, o que mostra que esta era uma cultura habituada a enfrentar emergências e estava bem preparada para isso. O que aconteceu com o comércio terrestre?
Este morreu – e junto com ele o comércio marítimo – por causa do desastre produzido na divisória de águas indo-gangética, que produziu profundas mudanças geomórficas na região. Imagens do Landsat mostram que o rio Sutlej, que uma vez fora afluente do Sarasvati, transformou-se em tributário do Indus. Isso inundou toda a área povoada do vale do Sarasvati. A terra mudou de forma.
Não se pôde continuar plantando, nem produzindo, nem comerciando. A partir de 1900 a.C., a civilização harappiana entra em declínio. As razões desta decadência são variadas: por um lado, a ameaça constante das inundações anuais provocadas pelas monções e o degelo dos Himalayas exigiam contínuas obras de engenharia que podem ter acabado por fatigar os habitantes. Qualquer descuido na manutenção dos diques de contenção ou fraqueza na sua estrutura poderia provocar catástrofes fatais.
Sir Mortimer Wheeler fala ainda da devastação florestal da área circundante às cidades. A queima das árvores utilizadas para cozer os tijolos deve ter desertificado a região ao longo dos séculos, com a conseqüente diminuição das chuvas. Isto não foi bem assim. Experts em paleohidrologia (R. L. Reykes e Dyson) concluíram na década de 1960 que esta teoria do desmatamento não é convincente. Estudos de campo indicam que somente 400 acres de selva ao longo do Indus teriam sido suficientes para produzir a madeira necessária para cozer todos os tijolos usados em Mohenjo Daro durante um espaço de tempo de 1000 anos.
Durante o período de migração, que coincide com o início da desertificação do vale do rio Sarasvati, provocada pelo movimento das placas tectônicas, entre 1900 e 1500 a.C., as populações estabelecidas na área foram transladando-se gradativamente para o vale do Ganges, onde deram prosseguimento à sua forma de vida. Paralelamente, surgem as primeiras Upanishads, Brahmanas e Áranyakas, textos sagrados onde se assentam as bases do Yoga, que, junto com os Vedas, formarão o corpo da literatura revelada dos hindus, o Shruti (“revelação”), pois, quando uma civilização sente que seu patrimônio cultural está em perigo, apressa-se para dar-lhe forma e registrá-lo.
O árduo trabalho que implicaram esses novos assentamentos numa cultura habituada a um alto nível de vida urbana coincide com a aparição dos Shastras. Esta simultaneidade é reveladora, porque aqui é categórico o peso das tradições orais. Também o é a consciência e identidade cultural, que torna-se evidente na profusão e diversidade de Shastras. Para realizar estas tarefas, já tinham criado todas as ferramentas necessárias. Pois tudo estava neles: a força para reconstruir e a convicção para conservar seu legado.
No período imediatamente posterior, até o s. III a.C., definiram-se as bases do hinduísmo e da moderna nação indiana. O rio Ganges foi testemunha do surgimento dos códigos de lei (dharma), o sistema de castas, os seis sistemas ortodoxos de filosofia (darshanas) e numerosos Shastras (escrituras), como os Tantras, Ágamas e Samhitas, que deram início ao período chamado Smrti (“memória”), da tradição, assim como também as duas grandes heresias do hinduísmo: budismo e jainismo, que acabariam por sua vez por influenciar as próprias instituições hindus.
As cidades-estados da planície gangética foram palco de sucessivas invasões ao longo do tempo: os persas do rei Dario irromperam em 520 a.C., os gregos penetraram no subcontinente vindos da Pérsia (Irã) em 334 a.C., os hunos invadiram pelo nordeste em 350 d.C., os muçulmanos comandados por Muizz Udin de Ghazni em 1175, e, finalmente, os portugueses, franceses e ingleses a partir do s. XVI.
- Artigo originalmente publicado nas páginas 87 a 102 da 2ª edição, de janeiro de 2000, do livro História do Yoga (1997), de Pedro Kupfer (1966-), e também publicado em 23 de julho de 2000 em yoga.pro.br, o site do Pedro [↩]
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