Yamas e Niyamas, a ética do Yoga
Cristiano Bezerra (1971-) (1)
“Quando o yogi se torna qualificado, através da prática da disciplina ética, por abster-se de ações ilícitas (yama) e da auto superação (niyama), pode (então) começar a prática de asanas e das outras técnicas.”
Yoga Bhasya Varana, II:29
“Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do Yoga, tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo. Yama e niyama são os dois primeiros passos da caminhada, condição indispensável para que a prática dê resultados concretos.”
Pedro Kupfer (1966-)
O fundamento do Yoga, como de toda espiritualidade autêntica, é uma ética universal. Essa prática compreende 10 grandes obrigações morais que podem ser consideradas patrimônio de todas as grandes religiões. São elas os 5 yamas e os 5 niyamas.
Yama significa controle ou domínio. É o pontapé inicial no caminho do Yoga. Os yamas são cinco proscrições: ahimsa, satya, asteya, brahmacharya e aparigraha, aquilo que não devemos fazer, os refreamentos ou abstinências que pretendem purificar o yogi, aniquilar a subjetividade advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios seguintes da prática. Desempenham o controle dos impulsos naturais, que se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, e órgãos sexuais e excretores. Essas normas de disciplina moral têm a finalidade de por freio ao poderoso instinto de sobrevivência e canalizá-lo para servir a um propósito superior, regulando as interações sociais do yogi, harmonizando o relacionamento dele com os outros seres. Esse controle criativo que os yogis exercem sobre as suas energias exteriorizantes resulta num excedente energético que pode então ser posto a serviço da transformação espiritual da personalidade.
Ahimsa, a não-violência, entende-se como não matar, não agredir, não ferir, nem causar nenhum tipo de dor a nenhum ser vivo. É a raiz de todas as outras normas morais.
Satya, a veracidade ou o não mentir, consiste em fazer coincidir pensamentos, palavras e ações, o que deve entender-se como evitar a falsidade em todas as suas formas.
Asteya significa não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem. Não é apenas não roubar, mas eliminar totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou ideias) alheios.
Brahmacharya, o não desvirtuamento da sexualidade (não perverter, nem degradar, exacerbar, explorar ou se submeter ao sexo) pode interpretar-se como ser coerente em sua vida relacional e sexual. A palavra Brahmacharya é composta da raiz char, que significa mover-se, e da palavra Brahma, que significa verdade essencial. Assim, podemos entender brahmacharya como um movimento em direção ao essencial. É mais usado, geralmente, em termos de abstinência sexual. Mais especificamente, brahmacharya sugere que devemos formar relacionamentos que nos façam entender as verdades mais nobres.
Aparigraha, a não possessividade ou o não cobiçar, traduz-se em generosidade e desapego (vairagya) em relação não apenas aos bens materiais, mas também às relações afetivas. O apego (raga) nos tira da sintonia necessária para praticar. Assim, os yogis são encorajados a cultivar a simplicidade voluntária, pois o excesso de bens materiais só serve para distrair a mente, sendo a renúncia (vairagya) um aspecto essencial do estilo de vida yogiko.
Não pode ser eficaz e verdadeira a meditação de alguém que está em dívida com seus semelhantes, se há alguém a quem feriu, a quem enganou, a quem furtou, a quem explorou sexualmente, a quem deseja ou desejou arrebatar algo, pois as vítimas estarão vibrando contra o pretenso meditante. À mente deste acorrerão lembranças e remorsos, que a inquietarão e frustrarão a pretensão de meditar.
Niyama, as prescrições psicofísicas, compreendem cinco disciplinas ou observâncias, ou seja, aquilo que devemos fazer: shaucha, santosha, tapas, svadhyaya e Ishvarapranidhana. Essas atitudes cumprem a função de domínio sobre os cinco órgãos de percepção (jñanendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos aponta à organização da vida pessoal e interior do praticante, harmonizando o seu relacionamento com a vida em geral e com a Realidade transcendente.
Shaucha é a pureza ou purificação. A purificação externa inclui alimentação vegana e orgânica, exercícios de purificação orgânica (como a lavagem das vias respiratórias e dos aparelhos digestivo e excretor) e manter limpo o ambiente em que se vive. Um organismo poluído por hábitos impróprios, como o uso de drogas (incluindo o cigarro e o álcool) ou alimentação intoxicante, gera comportamentos e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga. A purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As técnicas mais refinadas de purificação são tattva suddhi e chitta suddhi (antar mouna).
Santosha, o contentamento, consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas, o que facilitará muito o progresso na prática. O contentamento é uma expressão da renúncia (vairagya), o sacrifício voluntário das coisas que nos serão inevitavelmente arrebatadas no momento da morte. Liga-se de perto àquela atitude de indiferença que faz com que os yogis encarem com a mesma atitude um torrão de terra e uma pepita de ouro, o que permite que eles se deparem com o sucesso e o fracasso, o prazer e a dor, com a mesma equanimidade inabalável.
Tapas é disciplina, determinação, força de vontade concentrada, esforço sobre si próprio, a sobriedade e austeridade visando a queimar os desejos egocêntricos, inferiores, instintivos e naturais, eliminando moleza, debilidade, pieguice etc.
Svadhyaya é o estudo da metafísica do Yoga e de si próprio; abrange não apenas o autoconhecimento, através da reflexão sobre a sabedoria das escrituras (shastras), mas também a aplicação prática desse conhecimento.
Ishvarapranidhana é a devoção, consagração, auto entrega e submissão a Ishvara (Senhor, Deus pessoal), entendido como o arquétipo do yogi, o modelo ideal a ser seguido pelo praticante. Também significa entregar incondicionalmente as ações e seus frutos a uma vontade superior à sua própria. Pode entender-se como auto aceitação no momento presente ou, ainda, como serviço à Humanidade.
Poucas escolas de Yoga hoje em dia, principalmente aqui no Ocidente, se dedicam a ensinar os yamas e niyamas. Entretanto, uma pequena reflexão sobre eles revela a sua importância na manutenção da “ecologia” social e individual. Através da prática desses preceitos se estabelece uma convivência pacífica, harmoniosa e feliz na sociedade. É por essa razão que o sábio Patañjali os chama sarvabhauma, supremos ou universais, pois valem para todas as pessoas e em todas as circunstâncias.
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Yoga Bhasya Varana, II:29
“Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do Yoga, tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo. Yama e niyama são os dois primeiros passos da caminhada, condição indispensável para que a prática dê resultados concretos.”
Pedro Kupfer (1966-)
O fundamento do Yoga, como de toda espiritualidade autêntica, é uma ética universal. Essa prática compreende 10 grandes obrigações morais que podem ser consideradas patrimônio de todas as grandes religiões. São elas os 5 yamas e os 5 niyamas.
Yama significa controle ou domínio. É o pontapé inicial no caminho do Yoga. Os yamas são cinco proscrições: ahimsa, satya, asteya, brahmacharya e aparigraha, aquilo que não devemos fazer, os refreamentos ou abstinências que pretendem purificar o yogi, aniquilar a subjetividade advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios seguintes da prática. Desempenham o controle dos impulsos naturais, que se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, e órgãos sexuais e excretores. Essas normas de disciplina moral têm a finalidade de por freio ao poderoso instinto de sobrevivência e canalizá-lo para servir a um propósito superior, regulando as interações sociais do yogi, harmonizando o relacionamento dele com os outros seres. Esse controle criativo que os yogis exercem sobre as suas energias exteriorizantes resulta num excedente energético que pode então ser posto a serviço da transformação espiritual da personalidade.
Ahimsa, a não-violência, entende-se como não matar, não agredir, não ferir, nem causar nenhum tipo de dor a nenhum ser vivo. É a raiz de todas as outras normas morais.
Satya, a veracidade ou o não mentir, consiste em fazer coincidir pensamentos, palavras e ações, o que deve entender-se como evitar a falsidade em todas as suas formas.
Asteya significa não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem. Não é apenas não roubar, mas eliminar totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou ideias) alheios.
Brahmacharya, o não desvirtuamento da sexualidade (não perverter, nem degradar, exacerbar, explorar ou se submeter ao sexo) pode interpretar-se como ser coerente em sua vida relacional e sexual. A palavra Brahmacharya é composta da raiz char, que significa mover-se, e da palavra Brahma, que significa verdade essencial. Assim, podemos entender brahmacharya como um movimento em direção ao essencial. É mais usado, geralmente, em termos de abstinência sexual. Mais especificamente, brahmacharya sugere que devemos formar relacionamentos que nos façam entender as verdades mais nobres.
Aparigraha, a não possessividade ou o não cobiçar, traduz-se em generosidade e desapego (vairagya) em relação não apenas aos bens materiais, mas também às relações afetivas. O apego (raga) nos tira da sintonia necessária para praticar. Assim, os yogis são encorajados a cultivar a simplicidade voluntária, pois o excesso de bens materiais só serve para distrair a mente, sendo a renúncia (vairagya) um aspecto essencial do estilo de vida yogiko.
Não pode ser eficaz e verdadeira a meditação de alguém que está em dívida com seus semelhantes, se há alguém a quem feriu, a quem enganou, a quem furtou, a quem explorou sexualmente, a quem deseja ou desejou arrebatar algo, pois as vítimas estarão vibrando contra o pretenso meditante. À mente deste acorrerão lembranças e remorsos, que a inquietarão e frustrarão a pretensão de meditar.
Niyama, as prescrições psicofísicas, compreendem cinco disciplinas ou observâncias, ou seja, aquilo que devemos fazer: shaucha, santosha, tapas, svadhyaya e Ishvarapranidhana. Essas atitudes cumprem a função de domínio sobre os cinco órgãos de percepção (jñanendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos aponta à organização da vida pessoal e interior do praticante, harmonizando o seu relacionamento com a vida em geral e com a Realidade transcendente.
Shaucha é a pureza ou purificação. A purificação externa inclui alimentação vegana e orgânica, exercícios de purificação orgânica (como a lavagem das vias respiratórias e dos aparelhos digestivo e excretor) e manter limpo o ambiente em que se vive. Um organismo poluído por hábitos impróprios, como o uso de drogas (incluindo o cigarro e o álcool) ou alimentação intoxicante, gera comportamentos e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga. A purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As técnicas mais refinadas de purificação são tattva suddhi e chitta suddhi (antar mouna).
Santosha, o contentamento, consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas, o que facilitará muito o progresso na prática. O contentamento é uma expressão da renúncia (vairagya), o sacrifício voluntário das coisas que nos serão inevitavelmente arrebatadas no momento da morte. Liga-se de perto àquela atitude de indiferença que faz com que os yogis encarem com a mesma atitude um torrão de terra e uma pepita de ouro, o que permite que eles se deparem com o sucesso e o fracasso, o prazer e a dor, com a mesma equanimidade inabalável.
Tapas é disciplina, determinação, força de vontade concentrada, esforço sobre si próprio, a sobriedade e austeridade visando a queimar os desejos egocêntricos, inferiores, instintivos e naturais, eliminando moleza, debilidade, pieguice etc.
Svadhyaya é o estudo da metafísica do Yoga e de si próprio; abrange não apenas o autoconhecimento, através da reflexão sobre a sabedoria das escrituras (shastras), mas também a aplicação prática desse conhecimento.
Ishvarapranidhana é a devoção, consagração, auto entrega e submissão a Ishvara (Senhor, Deus pessoal), entendido como o arquétipo do yogi, o modelo ideal a ser seguido pelo praticante. Também significa entregar incondicionalmente as ações e seus frutos a uma vontade superior à sua própria. Pode entender-se como auto aceitação no momento presente ou, ainda, como serviço à Humanidade.
Poucas escolas de Yoga hoje em dia, principalmente aqui no Ocidente, se dedicam a ensinar os yamas e niyamas. Entretanto, uma pequena reflexão sobre eles revela a sua importância na manutenção da “ecologia” social e individual. Através da prática desses preceitos se estabelece uma convivência pacífica, harmoniosa e feliz na sociedade. É por essa razão que o sábio Patañjali os chama sarvabhauma, supremos ou universais, pois valem para todas as pessoas e em todas as circunstâncias.
- Síntese por Cristiano Bezerra (1971-) em 2001 baseada em textos dos livros A Tradição do Yoga (1998), de Georg Feuerstein (1947-2012), Convite à Não-violência (1984), do Professor Hermógenes (1921-2015), e Yoga Prático (1998), de Pedro Kupfer (1966-). [↩]
Gratidão imensa!
Não há de que, Grazielle, a gratidão é toda minha!
Explicação didática. Excelente trabalho!
Que bom que você gostou, Vera Lúcia! Muitíssimo grato!
Ótima síntese e conteúdo com excelentes referências! Muito grata!
Não há de que, Barbara, a gratidão é toda minha, e que bom que você gostou!