Vida de Yoga, Vedanta e Surf
Cadernos de Yoga: Você praticou diferentes linhas de Hatha Yoga. Como se deu o processo de tirar o foco da prática do corpo para o estudo de Vedanta?
Pedro Kupfer: A bem da verdade, não tirei o foco da prática corpórea, pois nunca deixei de praticar Hatha Yoga. O que mudou foi a minha relação com essa prática. Antes, acreditava que se fosse um bom menino e praticasse todos os asanas, pranayamas e meditações, o samadhi iria acontecer em algum momento, como por arte de mágica. Evidentemente, depois de mais de 10 anos praticando intensamente e esperando o tão ansiado momento, vi que esse caminho não iria me levar a lugar algum.
A inquietude que não cessava, a vontade de compreender o porquê desse aparente fracasso e a inquebrantável confiança que sempre senti pelo Yoga, me levaram a buscar outras soluções. Nesse processo, em 1999, tive a boa fortuna de conhecer a professora Gloria Arieira, que me apresentou o Vedanta e me conduziu a Swami Dayananda, com quem venho estudando em retiros que acontecem regularmente em seu Ashram de Rishikesh, no norte da Índia.
Assim, o que mudou foi a minha percepção da prática e do que podia esperar dela: aquela velha crença de que a iluminação é uma experiência caiu por terra. Quando comecei a estudar Vedanta, adquiri uma nova e mais profunda compreensão do Yoga, e senti que consegui dar alguns passos importantes dentro do processo de maturidade emocional e crescimento interior. Hoje em dia, continuo a prática de Hatha, porém sem exigir dela algo que ela não pode dar: moksha, a iluminação.
Cadernos de Yoga: O que observa que mudou no Yoga e nas pessoas que buscam o Yoga no Brasil, desde quando começou a praticar até o presente momento?
Pedro Kupfer: Lembro que, quando comecei a praticar, as pessoas eram mais crédulas, e praticavam, como eu, esperando uma solução mágica, uma espécie de graça que iria acontecer por algum tipo de bênção sobrenatural. Por outro lado, o ambiente de Yoga daquela época era muito pequeno e reservado. Estou falando do início da década de 1980, no Uruguai, mas creio que no Brasil a situação era similar.
Éramos idealistas e tínhamos a certeza de que o Yoga poderia mudar o mundo, tornar a sociedade humana um lugar mais amigável e o ser humano um bicho menos brutal. Pessoalmente, mantenho essa convicção ainda hoje, não mais aplicada à sociedade como um todo, senão a alguns indivíduos que estejam prontos e desejem dar esse passo. Não acho que o Yoga seja ou deva ser um fenômeno de massas. Daquela época guardo muito gratas lembranças, além de amizades que duram por toda uma vida.
Com o passar do tempo, observamos que, no meio da década de 1990, houve um “momento fitness“, no qual o Yoga passou a ser considerado como um tipo de ginástica exótica. Dez anos depois, as coisas começaram a mudar para melhor e a percepção que a sociedade passou a ter do Yoga estava vinculada com a busca do bem-estar e o gerenciamento do estresse. Mais recentemente, observamos uma tendência genuína de muita gente que está buscando o Yoga como aquilo que ele é: uma visão e um modo de vida focados no autoconhecimento, cujos efeitos secundários estão, sim, vinculados com uma rotina e um aumento da qualidade de vida e da saúde, e um cotidiano com menos estresse.
Cadernos de Yoga: O que é ser yogi e levar uma vida de Yoga para você?
Pedro Kupfer: Basicamente, é uma questão de cultivar valores e implementá-los na prática. O tipo de sadhana que fazemos, os mantras que cantamos, as técnicas de meditação que usamos e a dieta que seguimos são elementos auxiliares, porém secundários, na vida de Yoga. O que vejo realmente como essencial é, para além dessas diferenças, sermos capazes de cultivar a compaixão, o amor, a fraternidade, a cortesia e a tranquilidade e permitir que a graça de Ishvara se manifeste através de todos nossos gestos, palavras e ações.
Cadernos de Yoga: Certa vez você disse, “a nossa casa é onde a gente está”. Você se sente em casa nessa vida quase nômade que leva viajando e ensinando?
Pedro Kupfer: Creio que podemos tirar o “quase” da frente da palavra nômade. Meio sem perceber, acabamos, minha esposa e eu, nos tornando nômades. Viajamos incessantemente desde 2005. O propósito das nossa viagens é duplo: de um lado, estudar e conviver com o nosso mestre, que é a prioridade absoluta. Do outro, aplicar esse conhecimento no cotidiano, notadamente nos relacionamentos, na prática de Yoga e de Surf.
Viver do lado de um mestre do calibre de Swami Dayananda é uma oportunidade única de aprender a aplicar os valores do dharma no cotidiano, já que apenas estudar e praticar sozinho em casa não abrange todos os aspectos de uma vida de Yoga: por momentos, enfrentamos situações, dilemas e paradoxos que não podem ser resolvidos sem a ajuda ou o exemplo vivo de um jivanmukta.
Assim, quando observamos as decisões, atitudes e atitudes que o mestre cultiva, aprendemos muito, através do exemplo. Muitas vezes, questões referentes ao dharma não são brancas ou negras e nem têm contornos definidos. Compreender e interpretar as nuanças do cinza que unem o branco e o negro é essencial para sair da teoria.
De fato, a nossa casa é onde a gente está. Sinto-me em casa quando estou com os amigos, que estão espalhados pelo mundo, ou sobre o tapete de prática, ou sobre a prancha, ou se tiver um momento tranquilo para cantar mantras com um instrumento nas mãos. Isso, evidentemente, não depende do lugar onde esteja. Assim, estou sempre em casa.
Cadernos de Yoga: Qual a relação entre o Surf e uma vida de Yoga?
Pedro Kupfer: Essa pergunta é bastante subjetiva, uma vez que o Surf é uma atividade que pode ser classificada de maneiras muito diferentes. Para algumas pessoas, ele é um esporte. Para outras, uma moda, uma religião, uma indústria ou uma forma de ganhar fama ou dinheiro. Para uma minoria, o Surf é um estilo de vida. Esses são os soul surfers, os surfistas de alma.
Para mim, pessoalmente, o Surf é um exercício, uma maneira de aplicar o ensinamento do Yoga na prática, através do nididhyasanam, a reflexão na ação. Como a prática dessa atividade acontece no mar, o encontro com a natureza é algo muito restaurador, que possibilita harmonizar as próprias energias com as da natureza. Mas isto é, repito, algo totalmente pessoal e subjetivo. Esse mesmo exercício pode ser feito noutros lugares, e através de outras atividades.
Cadernos de Yoga: Muitas pessoas conhecem o Yoga e acreditam que é necessário largar o trabalho e abandonar muitas coisas para levar uma vida de Yoga. O que acha disso? É possível conciliar uma vida de Yoga com uma vida “na sociedade”, vivendo em grandes cidades, distantes de ambientes naturais e mantendo um intenso ritmo de trabalho?
Pedro Kupfer: Essa é uma maneira distorcida de olhar para o Yoga e para a vida de Yoga que percebemos com uma certa frequência, infelizmente. Esta questão está vinculada com o que disse no fim da resposta à pergunta anterior: para que haja moksha, não é necessário mudar de vida no sentido de abandonar tudo o que se fez anteriormente, mas cultivar o discernimento e um olhar desapegado, sendo capaz de ver, objetivamente, o que tem valor e o que não tem.
Penso que não há necessidade de rejeitar o que se viveu anteriormente nem que seja preciso abandonar as próprias ocupações. Tampouco sinto que seja aconselhável deixar de cumprir as nossas responsabilidades e os papéis que exercemos na nossa família ou na sociedade. Os shastras nos falam de grandes yogis realizados, como o rei Janaka, pai da heroína Sita no Ramayana, que sempre conciliaram os próprios deveres familiares e sociais com a espiritualidade.
Cadernos de Yoga: A partir da sua experiência como um importante formador de professores de Yoga, o que você observa que falta hoje no professor ou no praticante de Yoga?
Pedro Kupfer: Não diria que sou um “importante” formador de professores. Sou um praticante esforçado que, motivado por amigos e colegas, aceitou a sugestão de transmitir suas experiências e conhecimento aos demais. Houve um longo caminho percorrido desde que comecei a engatinhar no Yoga em 1983, guiado por meu primeiro professor, até tomar a decisão de me dedicar integralmente ao Yoga. Fiz muitos cursos, práticas, leituras e estudo antes de tomar a decisão de começar a dar aulas.
Creio que essa lenta deliberação e maturação do processo que o Yoga é está ausente nos dias de hoje em muitos círculos. As regras atualmente parecem ser a precipitação, a falta de reflexão e compreensão, e o imediatismo. Vejo em muitas pessoas uma certa ansiedade por trajar as “vestes” do yogi, assumir o modo de vida ou um arremedo do modo de vida do Yoga, sem que essas ações sejam acompanhadas por uma mudança de atitude em relação aos próprios desejos. Noutras palavras, observo que têm pessoas que colocam a carroça à frente dos bois e, com isso, terminam sofrendo desnecessariamente.
Cadernos de Yoga: O que lhe inspira na sua busca pessoal e no seu trabalho com o Yoga?
Pedro Kupfer: Os mestres, sejam os que usam vestes de cor açafrão, sejam aqueles que nos ensinam com suas próprias atitudes e humildade, muitas vezes sem usar títulos ou hábitos. Hoje em dia têm muita gente bastante reativa à ideia de ter um mestre, mas mestres são essenciais no processo do Yoga. Digo isso plenamente ciente de que a nossa cultura rejeita alguns dos princípios da relação guru-shishya, como a iniciação, o dakshina, ou até mesmo questiona a necessidade de o mestre ser um Brahmanishtha, alguém que está firmemente estabelecido no conhecimento de si mesmo. Assim, junto com essa rejeição do mestre de verdade, vem o risco de cair nas mãos de “falsos profetas”.
Outra fonte de inspiração muito importante são os próprios shastras, notadamente as Upanishads, que são um verdadeiro repositório de inspiração para todos os momentos, especialmente os de crise. O meu fascínio pelos textos antigos não nasce da curiosidade intelectual, senão da capacidade que eles têm de apresentar moksha como algo acessível, especialmente quando explanados e comentados por um professor competente. Acho que esta espiritualidade nascida na Índia é a grande contribuição que essa civilização deu à Humanidade.
A terceira a última fonte de inspiração é shraddha, a capacidade que se pede ao praticante para confiar no ensinamento. Essa confiança, ao contrário da fé cega, nasce da constatação evidente de que é possível crescer para mais além de crenças e condicionamentos. Percebo, olhando para trás, que dei alguns passos importantes. Sei que tenho um caminho muito longo pela frente, mas esse fato, ao invés de me provocar desânimo, me serve como estímulo para seguir adiante. Quando penso nos obstáculos que consegui superar graças à prática do Yoga e à visão libertadora do Vedanta, isso me motiva para continuar a caminhada, tranquilo e feliz. Namaste!
- Também publicada em 10 de outubro de 2011 em yoga.pro.br, o site do Pedro [↩]
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