Unindo Yoga e Psiquiatria
Em visita ao Brasil, no ano de 2000, a indiana Uma Krishnamurthy Goswami concedeu esta entrevista à revista Planeta, na qual fala da situação do Yoga no mundo e mostra como incorporou essa prática milenar à Psiquiatria.
PLANETA: Várias tradições espirituais, entre elas a indiana, afirmam que a mente humana é naturalmente positiva, isto é, possui uma tendência nata para a felicidade. Como foi que perdemos esse estado inicial da alma?
Uma Krishnamurthy: A consciência, de acordo com a definição das Upanishads, é um estado de atenção e felicidade. A alma é considerada de natureza divina, e a consciência individual é da mesma qualidade. A mente tem essa capacidade de refletir sobre a natureza da consciência, o que faz a gente se sentir muito feliz e satisfeito, ou tem a capacidade de identificar os cinco sentidos da percepção. Hoje, o número de pessoas felizes não é tão alto como deveria ser. Para alcançar a felicidade é preciso identificar mais instrumentos da consciência, como o corpo e a alma. Todo o esforço do Yoga é nos fazer perceber a consciência que flui por meio de nós.
PLANETA: O Yoga seria, então, um caminho para resgatar essa condição primordial?
Uma: A palavra Yoga significa unir. Unir a consciência individual com a universal. De acordo com a Tradição, nós já estamos unidos, mas perdemos a percepção desse estado. O propósito da prática do Yoga é nos ajudar a tomar consciência dessa unidade. Acredito que o Yoga é, basicamente, a ciência da felicidade.
PLANETA: Que tipo de Yoga?
Uma: Há muitos tipos de Yoga, mas o objetivo de todos é o mesmo. Algumas pessoas ficam confusas por haver vários tipos, como Hatha Yoga, Tantra Yoga, Raja Yoga, Mantra Yoga, etc. A razão dessa variedade, porém, é que cada ser humano tem necessidades diferentes.
PLANETA: O Tantra Yoga ainda é utilizado na Índia?
Uma: Todas essas formas de Yoga são utilizadas na Índia. Mas o Hatha, tanto lá como em outros lugares, é o mais comum. O Tantra Yoga também é praticado, porém, não se destaca tanto.
PLANETA: No Ocidente parece haver uma distorção do Tantra Yoga. Você tem informações sobre isso?
Uma: Sim. No Ocidente, o Yoga tem sido mais usado como uma maneira de melhorar a saúde, reduzir o estresse, promover a beleza; seus aspectos espirituais são, em geral, deixados de lado. A filosofia do Yoga tem que estar conectada com a prática. Porque, se você olha para a concepção geral do Yoga, há uma filosofia, uma psicologia e uma fisiologia. O que está provavelmente acontecendo é que parte dessas pessoas está dando mais importância para a fisiologia do que para a filosofia e a psicologia. O nível espiritual do Yoga precisa ser praticado.
PLANETA: No caso do Tantra Yoga, parece que é o aspecto sexual que causa essa distorção…
Uma: Tantra significa transformação. Em qualquer Yoga, incluindo o Tantra, o objetivo é a transformação psicológica. Os mestres queriam desencadear a transformação psicológica através da experimentação da supra consciência…
PLANETA: Que no caso do Tantra Yoga se atinge por meio do sexo…
Uma: Não necessariamente. Talvez isso aconteça porque os professores do Ocidente são atraídos por atividades que enfatizam os aspectos físicos, a atividade sexual. Quando os professores apresentam o Yoga para o público, as pessoas que querem conhecer os seus aspectos mais profundos se surpreendem. Elas descobrem que a finalidade do Yoga é espiritual. Na verdade, a finalidade do Tantra Yoga é promover a integração dos princípios masculino e feminino, uma integração psicológica. Assim a personalidade se integra.
PLANETA: Você incorporou o Yoga à Psiquiatria. De que maneira fez isso?
Uma: Minha família é muito espiritualizada. Eu fui criada na tradição do Yoga. Ao mesmo tempo, tive um treinamento específico em Psiquiatria. Achei que seria interessante integrar a psicologia do Ocidente e a do Oriente. Na psicologia ocidental, há o conceito da mente consciente e da mente inconsciente. Na psicologia do Yoga, temos, além desses dois conceitos, a supra consciência. O Ocidente estudou a mente desperta e o estado do sonho. Já o Oriente valorizou basicamente quatro aspectos: a mente desperta, o estado sonho, o do sono profundo e o estado transcendental. As terapias modernas, por exemplo, tentam ajudar as pessoas no campo do inconsciente. Como se sabe, a mente inconsciente é um reservatório de memórias. E, às vezes, ir fundo nas memórias não ajuda a resolver os problemas. Pelo contrário: as memórias, ao invés de serem liberadas, se tornam mais fortes. No Yoga, a estratégia é ajudar o corpo a experimentar a supra consciência, que, por definição, é um estado além do tempo e do espaço. Nesse estado não há problemas, apenas soluções. Quanto mais a pessoa experimenta o estado supra consciente, mais tem o poder de dissolver, de liberar as memórias que estão presas na mente inconsciente. Algumas das práticas de Yoga, como asanas e pranayamas, também trabalham na mente inconsciente. Elas ajudam a mente a ficar mais leve, a liberá-la do peso das memórias mais traumáticas, dando a chance de a felicidade fluir.
PLANETA: É possível, por exemplo, tratar distúrbios emocionais profundos com a ajuda do Yoga? Você faz isso em um consultório?
Uma: Sim. Eu costumava trabalhar em um hospital psiquiátrico em Bangalore, no sul da Índia. Trabalhei lá até recentemente. Ali se usa o Yoga com os pacientes. Posso garantir que é eficaz com a maior parte dos distúrbios emocionais, como a depressão e a ansiedade. Também é empregado para melhorar a concentração e a memória. Agora que estou viajando muito, tenho clinicado pouco. Hoje, dou programas de treinamento para professores e terapeutas interessados em introduzir a prática do Yoga no tratamento de seus pacientes.
PLANETA: O paciente é, então, tratado com terapia convencional e adota-se, paralelamente, um programa de Yoga?
Uma: No meu tratamento eu costumo assumir os dois papéis, porque tenho conhecimento e background para lidar com ambos. Às vezes, trabalho integradamente com terapeutas do Vivekanandakendra, um conceituado centro de Yoga na Índia. Esse ponto é importante: é possível integrar as duas terapias. Os médicos do Vivekanandakendra estão preparados para isso. Mas o ideal é que os profissionais envolvidos, que trabalham com saúde mental, se exponham a abordagens alternativas, como o Yoga.
PLANETA: Qual é a situação da Psiquiatria na Índia? Olhando-se de fora, a sensação que se tem é que ali não existe espaço para ela…
Uma: A Psiquiatria é um campo novo na Índia. Até porque no passado não havia grandes problemas psicológicos no país, já que as famílias davam ao indivíduo um bom suporte emocional. Também havia poucos conflitos psicológicos. Agora o estresse na Índia também está aumentando, então, precisamos de psiquiatras. Os estudantes são as principais vítimas. Eles estão sendo influenciados pelo Ocidente porque assistem a muita televisão. Por outro lado, existe a pressão da tradição indiana. Eles realmente precisam de ajuda.
PLANETA: Nós poderíamos dizer que isso é consequência de uma ocidentalização da Índia?
Uma: Acho que no passado a Índia também tinha problemas emocionais, mas eles eram levados aos membros da família, aos sábios, aos líderes religiosos e aos curadores locais. No final, as pessoas conseguiam alguma ajuda emocional.
PLANETA: Muitos médicos admitem que a meditação exerce influência bastante positiva sobre a saúde do ser humano. Qual é o mecanismo dessa ação?
Uma: De acordo com a tradição yogika, a consciência é a base do Ser, a referência. Hoje a Física Quântica prova esse ponto de vista, essa convicção. No estado de consciência não há dualidade, não há distinção entre o sujeito e o objeto; é um estado puro de possibilidades e potenciais. Não é um estado passivo, mas sim dinâmico e criativo. A partir dele, a manifestação acontece, a mente é criada. E da mente criada nasce o ego. E do ego surge o que gosto, o que não gosto, e isso passa a se mesclar nas relações humanas. Na meditação, é como voltar à fonte da criação. Primeiro o corpo é silenciado, relaxado. Eu aquieto a mente. Às vezes posso usar exercícios de respiração para isso. Quando ela se acalma, é possível perceber o silêncio do consciente. Este é um estado muito curativo. É por isso que a maioria dos médicos recomenda a meditação, porque a maior parte do sofrimento é psicossomático, criado pela mente. Quando ela se torna calma e silenciosa, tem a chance de curar-se sozinha.
PLANETA: Está surgindo no Brasil a “yoga fitness”, que é ministrada em academias de ginástica. Quais as implicações dessa distorção do Yoga clássico?
Uma: É claro que, nesse caso, o Yoga é praticado mais como um exercício para aprimorar a saúde e a beleza. Na minha opinião, isso não é ruim. Pelo menos, melhora a saúde de quem pratica. Mas, ao mesmo tempo, eu fico triste, porque todo o aspecto do Yoga não está sendo explorado; o seu real potencial não está sendo ensinado. Mas muitas pessoas começam assim, em academias, e depois desenvolvem um interesse mais sério pelo Yoga. Passam, então, a procurar professores mais sérios, com os quais podem aprender mais. Por isso, a “yoga fitness” tem um aspecto positivo também.
PLANETA: Por outro lado, o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) vem afirmando que os professores de Yoga (segundo eles, uma atividade física) devem ter curso superior de Educação Física e registro de profissional da categoria(2). Como você vê isso?
Uma: É reflexo da evolução humana. A evolução, na verdade, é algo básico na filosofia do Yoga. Temos os instintos animais, mas eles podem ser transformados para ativar o potencial humano. Assim, o potencial humano enriquece e se transforma em super potenciais humanos. O homem é apenas um produto intermediário no ciclo da evolução. Ele tem cinco dimensões de personalidade: física, emocional, intelectual, social e espiritual. Atualmente, a educação está interessada em desenvolver o aspecto físico e intelectual das pessoas, e também um pouco do social. Mas os aspectos emocionais e espirituais são negligenciados. Isso não acontece só no Brasil, mas em todo o mundo, até mesmo na Índia. Não estou surpresa de que o Yoga seja considerado uma atividade física. Mas eu sou uma otimista. Acho que o Yoga deve ser introduzido de alguma maneira, não importa como. Deixe que venha como uma atividade física. Porque em algum momento, como a semente está lá, os estudantes vão começar a se questionar. Isso já está acontecendo na Europa. Lá o Yoga começou como uma atividade física e hoje eles não estão satisfeitos com essa abordagem. Eles estão buscando professores que saibam mais sobre os aspectos psicológicos e espirituais. Acho que o mesmo acontecerá no Brasil. Por algum tempo os praticantes ficarão excitados com os potenciais físicos, com o potencial terapêutico da prática, mas ainda não estarão completamente satisfeitos, e se voltarão para o seu lado espiritual.
PLANETA: Você se apresenta, profissionalmente, como dançarina de Bharata Natyam, uma dança indiana clássica. De que forma essa dança interfere no desenvolvimento da consciência humana?
Uma: O Bharata Natyam é um dos cinco estilos sagrados da dança indiana. Tem um potencial muito bom, tanto quanto o Yoga, para desenvolver as cinco dimensões da personalidade. É uma performance muito integrada, que envolve concentração, memória, atenção, treinamento do corpo, coordenação e elevação emocional para estar no estado meditativo. A dança envolve todos esses elementos. O dançarino está em um estado elevado de espírito e ao mesmo tempo totalmente concentrado e muito expressivo. Ele tenta passar emoções muito sutis para a audiência. No nível da personalidade, essa dança amplia a concentração e a memorização. É muito boa para remover emoções negativas; ajuda a experimentar emoções sutis e aumenta a coordenação. Ela tem quase dois mil anos de idade; é uma tradição viva, passada de geração para geração, especialmente no sul da Índia. Essa dança tem a ver com os aspectos místicos da natureza humana, como a devoção. Ela fala dos ensinamentos dos grandes mestres e conta a história de grandes acontecimentos; também narra as histórias dos deuses e deusas – na Índia, há muitos deles. Mas eles representam atributos da consciência cósmica. Se a uma pessoa é dito para meditar sobre a presença de Deus, ela pode achar difícil. Mas, na dança, essa meditação é possível, porque é sob a forma de histórias. Assim, o espectador pode manter a concentração com esses temas mais complexos, de maior elevação. Muitas emoções são experimentadas durante o espetáculo, dependendo da habilidade do dançarino. Bons dançarinos conseguem elevar a audiência ao mesmo estado meditativo. Experimenta-se o prazer, o poder e a satisfação da criação. São muitas emoções sutis.
PLANETA: Essa dança é calcada em cima de histórias da mitologia indiana. Funcionaria para um grupo de ocidentais?
Uma: Sim, porque as histórias dizem respeito a todos os seres humanos, não necessariamente à cultura indiana. Também há a flexibilidade para se usar a dança como uma forma de comunicação. Há dançarinos na Índia que adotam temas mais modernos, como a poluição. E, então, eles pegam um tema dos Vedas, os livros sagrados, sobre como a natureza deveria ser tratada, como se comunicar com ela. Através da dança, você pode abordar problemas atuais e também oferecer soluções.
PLANETA: Por meio da Física Quântica, a ciência contemporânea vem comprovando coisas ditas há milhares de anos pelas tradições religiosas do Oriente. Você acredita na possibilidade futura de uma união maior entre essas duas disciplinas?
Uma: Fico muito empolgada com a possibilidade de que isso aconteça. Na tradição do Yoga, das Upanishads, a palavra usada em sânscrito para sabedoria, e que está contida nos Vedas, é shruti. Shruti significa um sopro cósmico. Toda essa sabedoria não foi concebida pela lógica do ser humano, mas foi desvelada para ele, por meio da intuição. Hoje a ciência descobriu que a intuição não é ilógica, mas é paralógica. Em outras palavras, a intuição inclui a lógica. A intuição entende a lógica, mas a lógica leva muito tempo para entender a intuição. Todo esse conhecimento do Yoga foi dado há cerca de cinco mil anos por meio do processo da intuição. Hoje, a ciência que usa a lógica – por exemplo, a Física Quântica, que é uma das mais importantes disciplinas investigando as ciências da consciência – está confirmando os achados do Yoga. Então, a lógica e a intuição estão se encontrando. Nesse sentido, no Ocidente está surgindo também a Psicologia Transpessoal. Há, portanto, esperança de que a ciência possa ser feita a partir da base de referência da consciência. Na verdade, até agora, a ciência se mostrou mais interessada na matéria e menos na consciência. Se os cientistas e os espiritualistas se encontrarem, uma nova ciência pode surgir, apoiada na ciência da consciência. Isso certamente vai afetar muitos outros campos, como a Educação, os negócios, a Psicologia e a Biologia.
- Originalmente publicada na edição nº 334, de julho de 2000, da revista Planeta, da Editora Três. [↩]
- Saiba mais sobre toda essa confusa situação histórica lendo este Manifesto de 27 de maio de 2002 em yogapleno.com.br/yoga-ltda-ou-yoga-livre [↩]
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