Tenha a coragem de ser diferente
Professor Hermógenes (1921-2015) (1)
“Tenho que deixar isto, que está me matando”, dizia ele sob um ataque de tosse crônica e meio afogado em secreção, mostrando um toco de cigarro entre os dedos amarelados de nicotina.
Ele é o símbolo do ser humano acorrentado. Seus grilhões são feitos de fumo. De outros, podem ser de álcool. Todos os grilhões são fortíssimos, e o são exatamente na medida da fragilidade dos acorrentados.
A maioria deles quer libertar-se ou necessita libertar-se, porque, seja o fumo, seja o tranquilizante, seja o álcool, o jogo ou alguns maus hábitos, seus tiranos lhe trazem enfermidade, sofrimento e, às vezes, abjeção.
Todos os grilhões causam prejuízos ao psiquismo, mercê de demonstrarem ao próprio ser humano que ele está vencido, que é escravo, tíbio e sem vontade. Quem quer que chegue a essa condição sofre muito com o reconhecimento de sua servidão, que considera ser sem esperança. Diante de cada frustrada tentativa de resistir, mais infeliz se torna e mais vencido se sente. Seja toxicômano, alcoólatra, tabagista, viciado em jogo ou vítima de comportamentos compulsivos, pensamentos obsessivos e tiques nervosos, o ser humano é presa de um círculo vicioso que inexoravelmente o domina e o deprecia. O álcool, os tóxicos e o fumo, além do mais, agridem diretamente o próprio organismo. E esse efeito nefando amedronta o viciado.
A situação daquele que, vítima das garras do pecado, necessita deixá-lo, sentindo a impotência de fazê-lo, Ramakrishna comparou à de uma serpente que, tendo abocanhado um malcheiroso rato almiscarado, quer dele livrar-se, mas não pode, pois, em virtude do formato dos dentes, o rato não se desprega. Assim é o viciado que conhece o mal que o vício lhe traz e, no entanto, não consegue deixá-lo.
Nessa situação, é comum o viciado recorrer ao que a Psicanálise chama uma racionalização, isto é, o uso da razão para forjar “razões” consoladoras e explicativas, para, com elas, “justificar-se” diante de si mesmo e dos outros, pelos atos que é coagido a praticar, que não pode evitar, mercê de compulsões subconscientes.
O ébrio bebe “para esquecer”, ou porque “o álcool é vasodilatador”, ou “para desinibir-se”, ou “porque está fazendo frio”.
Tenho sabido até de “professores de yoga” (?!) que, exatamente por não se dedicarem às suas práticas, não se libertaram do fumo e do álcool, e por isso engendram razões tão capciosas que quase chegam a fazer proselitismo de vícios, recorrendo ao argumento de que é preciso se conservar “amor à liberdade”. Só se for a liberdade de continuar fraco e dominado!
A primeira forma de vencer o vício é não permitir que nasça. A segunda é impedir que cresça. A terceira é a erradicação progressiva e inteligente.
Evitar que a semente daninha caia em seu quintal é a mais eficiente maneira de não precisar arrancar a frondosa árvore depois.
Um vício se forma aos poucos, seguindo estágios.
O primeiro cigarro que se fuma, com certo desprazer, é o início de um processo que poderá vir a tomar conta da vítima.
O meninote acendeu seu primeiro cigarro por força da sugestão dos de sua idade, e também porque o cigarro representava para ele a masculinidade que, ainda imaturo, deseja ter. O início de um vício é quase sempre destituído de prazer, e, especialmente no caso do cigarro e do álcool, chega até a ser desagradável. Constitui mesmo um sacrifício necessário àquele que deseja “se mesmificar”, ficando igual aos outros.
A segunda fase surge quando, imperceptivelmente, o desagrado vai cedendo e já não há sacrifício. Aquilo que era mal recebido pelo organismo, por ser antinatural, começa a ser aceito. Podemos dizer que o fumo ou o álcool, nessa fase, nem dá prazer nem desprazer. São neutros.
Ainda aqui é simples cortar o processamento.
Está-se entrando na terceira fase, quando já se fuma ou bebe com certo gosto. Agora mais fortes vão se tornando as correntes, e o indivíduo começa a ceder de sua condição de agente livre, de ser humano dono de si mesmo.
A quarta fase é aquela na qual o organismo, já condicionado, só se sente normal quando é atendido em suas necessidades do agente condicionante. Daí por diante, também o psiquismo só se acalma depois que o viciado cumpre o “ritual”. Está a árvore daninha dominando a área. O viciado, embora se sentindo covarde e desgraçado, embora sabendo que está minando o corpo e a alma, não tem como resistir às imposições da necessidade de aplacar seu psiquismo e seu corpo sedentos do objeto do vício: seja o copo, o cigarro, o sexo ou o barbitúrico. É a fase da dependência orgânica e psíquica.
No caso do jogo, o processamento é semelhante, atendendo, naturalmente às peculiaridades. O fascínio pelo risco de perder e a esperança de ganhar ou recuperar o que já perdeu mantém o jogador prisioneiro, que, embora veja que está sacrificando tempo, energias, nervos, saúde, dinheiro, família e, às vezes, dignidade, é impotente para afastar-se da mesa do vício.
O bêbado de hoje poderia ser uma pessoa sóbria e com autodomínio se, em certo momento do passado, não tivesse cedido à “iniciação”. Ele já não se lembra em que reuniãozinha social, para mostrar-se “igual aos outros”, cretinamente bebeu seu primeiro gole, sentindo abominável o gosto, mas tendo que aparentar que estava gostando (segundo a moda). O tabagista de hoje, baixado ao hospital para operar o pulmão, não se recorda daquele dia da infância em que, para parecer adulto e “igual aos outros”, deu as primeiras baforadas num cigarro que um colega lhe dera. Pode ser dito o mesmo em relação àquele que se desagradou com as “bolinhas” ou com os cigarros de maconha. Em todos esses casos, o início é sempre sob a persuasão dos outros; e sob imitação, isto é, filiação à moda. Na origem, todos os “iniciados” já eram pessoas comumente chamadas “fracas de espírito”, ou seja, os de personalidade e mente amorfas, vidas inconscientes que buscam segurança, aceitação e prestígio no meio em que vivem, renunciando consequentemente ao dever de serem autênticas. O medo de ser diferente leva o fraco a imitar os do grupo. Quando o grupo é de gente viciada, o resultado é viciar-se.
Se você conhecer e sentir a inexpugnável fortaleza e o tesouro de paz e ventura que há em você, nunca buscará sua segurança nos integrantes de seu grupo, e terá a sábia coragem de ser diferente. Só os que são diferentes têm condições de não apenas se sobrepor, mas de liderar.
Se você quiser continuar senhor(a) de si e ganhar condições de ajudar aos outros, negue-se à vulgarização, tendo a coragem de ser diferente.
Na próxima reunião, quando todos, igualados, bem “normaizinhos”, bem “mesmificados”, estiverem bebericando, fumando e fazendo uso indevido da faculdade da palavra, sem pretender afrontá-los nem parecer melhor do que eles, não tenha medo de ser diferente. Quando todos os companheiros do seu grupo o convidarem para uma noitada de pôquer, lembre-se do imenso valor que representam seu equilíbrio, sobriedade, seu tempo e sua saúde, e convide-os para fazer algo melhor. Tenha a coragem de ser diferente.
É provável que a vulgaridade não entenda nem perdoe alguém que se nega a vulgarizar-se e agrida você. Mas você deve lembrar-se de que os raros autênticos são indispensáveis para servirem de esteio, de pontos de apoio, de orientação ao ser humano comum, escorregadiço e amorfo.
Não queira ser igual, em troca de ser aceito. Não ceda ao alcoolismo, ao tabagismo, aos narcóticos, às noitadas de dissipação. Só os psiquicamente adolescentes, por inseguros, o fazem. Revele sua maturidade, recusando-se, sem ofender aos vulgares, a segui-los em suas “normais” reuniões de vício e degradação.
Isso é o que eu quis dizer ao sugerir que você não deixe cair a semente daninha em seu quintal.
Não ceda.
Não esqueça o preceito hindu:
» por “Tenho que deixar isto, que está me matando”, dizia ele sob um ataque de tosse crônica e meio afogado em secreção, mostrando um toco de cigarro entre os dedos amarelados de nicotina.
Ele é o símbolo do ser humano acorrentado. Seus grilhões são feitos de fumo. De outros, podem ser de álcool. Todos os grilhões são fortíssimos, e o são exatamente na medida da fragilidade dos acorrentados.
A maioria deles quer libertar-se ou necessita libertar-se, porque, seja o fumo, seja o tranquilizante, seja o álcool, o jogo ou alguns maus hábitos, seus tiranos lhe trazem enfermidade, sofrimento e, às vezes, abjeção.
Todos os grilhões causam prejuízos ao psiquismo, mercê de demonstrarem ao próprio ser humano que ele está vencido, que é escravo, tíbio e sem vontade. Quem quer que chegue a essa condição sofre muito com o reconhecimento de sua servidão, que considera ser sem esperança. Diante de cada frustrada tentativa de resistir, mais infeliz se torna e mais vencido se sente. Seja toxicômano, alcoólatra, tabagista, viciado em jogo ou vítima de comportamentos compulsivos, pensamentos obsessivos e tiques nervosos, o ser humano é presa de um círculo vicioso que inexoravelmente o domina e o deprecia. O álcool, os tóxicos e o fumo, além do mais, agridem diretamente o próprio organismo. E esse efeito nefando amedronta o viciado.
A situação daquele que, vítima das garras do pecado, necessita deixá-lo, sentindo a impotência de fazê-lo, Ramakrishna comparou à de uma serpente que, tendo abocanhado um malcheiroso rato almiscarado, quer dele livrar-se, mas não pode, pois, em virtude do formato dos dentes, o rato não se desprega. Assim é o viciado que conhece o mal que o vício lhe traz e, no entanto, não consegue deixá-lo.
Nessa situação, é comum o viciado recorrer ao que a Psicanálise chama uma racionalização, isto é, o uso da razão para forjar “razões” consoladoras e explicativas, para, com elas, “justificar-se” diante de si mesmo e dos outros, pelos atos que é coagido a praticar, que não pode evitar, mercê de compulsões subconscientes.
O ébrio bebe “para esquecer”, ou porque “o álcool é vasodilatador”, ou “para desinibir-se”, ou “porque está fazendo frio”.
Tenho sabido até de “professores de yoga” (?!) que, exatamente por não se dedicarem às suas práticas, não se libertaram do fumo e do álcool, e por isso engendram razões tão capciosas que quase chegam a fazer proselitismo de vícios, recorrendo ao argumento de que é preciso se conservar “amor à liberdade”. Só se for a liberdade de continuar fraco e dominado!
A primeira forma de vencer o vício é não permitir que nasça. A segunda é impedir que cresça. A terceira é a erradicação progressiva e inteligente.
Evitar que a semente daninha caia em seu quintal é a mais eficiente maneira de não precisar arrancar a frondosa árvore depois.
Um vício se forma aos poucos, seguindo estágios.
O primeiro cigarro que se fuma, com certo desprazer, é o início de um processo que poderá vir a tomar conta da vítima.
O meninote acendeu seu primeiro cigarro por força da sugestão dos de sua idade, e também porque o cigarro representava para ele a masculinidade que, ainda imaturo, deseja ter. O início de um vício é quase sempre destituído de prazer, e, especialmente no caso do cigarro e do álcool, chega até a ser desagradável. Constitui mesmo um sacrifício necessário àquele que deseja “se mesmificar”, ficando igual aos outros.
A segunda fase surge quando, imperceptivelmente, o desagrado vai cedendo e já não há sacrifício. Aquilo que era mal recebido pelo organismo, por ser antinatural, começa a ser aceito. Podemos dizer que o fumo ou o álcool, nessa fase, nem dá prazer nem desprazer. São neutros.
Ainda aqui é simples cortar o processamento.
Está-se entrando na terceira fase, quando já se fuma ou bebe com certo gosto. Agora mais fortes vão se tornando as correntes, e o indivíduo começa a ceder de sua condição de agente livre, de ser humano dono de si mesmo.
A quarta fase é aquela na qual o organismo, já condicionado, só se sente normal quando é atendido em suas necessidades do agente condicionante. Daí por diante, também o psiquismo só se acalma depois que o viciado cumpre o “ritual”. Está a árvore daninha dominando a área. O viciado, embora se sentindo covarde e desgraçado, embora sabendo que está minando o corpo e a alma, não tem como resistir às imposições da necessidade de aplacar seu psiquismo e seu corpo sedentos do objeto do vício: seja o copo, o cigarro, o sexo ou o barbitúrico. É a fase da dependência orgânica e psíquica.
No caso do jogo, o processamento é semelhante, atendendo, naturalmente às peculiaridades. O fascínio pelo risco de perder e a esperança de ganhar ou recuperar o que já perdeu mantém o jogador prisioneiro, que, embora veja que está sacrificando tempo, energias, nervos, saúde, dinheiro, família e, às vezes, dignidade, é impotente para afastar-se da mesa do vício.
O bêbado de hoje poderia ser uma pessoa sóbria e com autodomínio se, em certo momento do passado, não tivesse cedido à “iniciação”. Ele já não se lembra em que reuniãozinha social, para mostrar-se “igual aos outros”, cretinamente bebeu seu primeiro gole, sentindo abominável o gosto, mas tendo que aparentar que estava gostando (segundo a moda). O tabagista de hoje, baixado ao hospital para operar o pulmão, não se recorda daquele dia da infância em que, para parecer adulto e “igual aos outros”, deu as primeiras baforadas num cigarro que um colega lhe dera. Pode ser dito o mesmo em relação àquele que se desagradou com as “bolinhas” ou com os cigarros de maconha. Em todos esses casos, o início é sempre sob a persuasão dos outros; e sob imitação, isto é, filiação à moda. Na origem, todos os “iniciados” já eram pessoas comumente chamadas “fracas de espírito”, ou seja, os de personalidade e mente amorfas, vidas inconscientes que buscam segurança, aceitação e prestígio no meio em que vivem, renunciando consequentemente ao dever de serem autênticas. O medo de ser diferente leva o fraco a imitar os do grupo. Quando o grupo é de gente viciada, o resultado é viciar-se.
Se você conhecer e sentir a inexpugnável fortaleza e o tesouro de paz e ventura que há em você, nunca buscará sua segurança nos integrantes de seu grupo, e terá a sábia coragem de ser diferente. Só os que são diferentes têm condições de não apenas se sobrepor, mas de liderar.
Se você quiser continuar senhor(a) de si e ganhar condições de ajudar aos outros, negue-se à vulgarização, tendo a coragem de ser diferente.
Na próxima reunião, quando todos, igualados, bem “normaizinhos”, bem “mesmificados”, estiverem bebericando, fumando e fazendo uso indevido da faculdade da palavra, sem pretender afrontá-los nem parecer melhor do que eles, não tenha medo de ser diferente. Quando todos os companheiros do seu grupo o convidarem para uma noitada de pôquer, lembre-se do imenso valor que representam seu equilíbrio, sobriedade, seu tempo e sua saúde, e convide-os para fazer algo melhor. Tenha a coragem de ser diferente.
É provável que a vulgaridade não entenda nem perdoe alguém que se nega a vulgarizar-se e agrida você. Mas você deve lembrar-se de que os raros autênticos são indispensáveis para servirem de esteio, de pontos de apoio, de orientação ao ser humano comum, escorregadiço e amorfo.
Não queira ser igual, em troca de ser aceito. Não ceda ao alcoolismo, ao tabagismo, aos narcóticos, às noitadas de dissipação. Só os psiquicamente adolescentes, por inseguros, o fazem. Revele sua maturidade, recusando-se, sem ofender aos vulgares, a segui-los em suas “normais” reuniões de vício e degradação.
Isso é o que eu quis dizer ao sugerir que você não deixe cair a semente daninha em seu quintal.
Não ceda.
Não esqueça o preceito hindu:
“Semeia um ato e colherá um hábito.
Semeia um hábito e colherá um caráter.
Semeia um caráter e colherá um destino.”
Leia na sequência:
Tenha a coragem de ser diferente
Descondicione-se
Leia também:
Criar bons hábitos e destruir maus hábitos
- Texto extraído das páginas 220 a 224 da 48ª edição, de 2013, do livro Yoga para Nervosos (1965), do Professor Hermógenes (1921-2015), e digitado por Cristiano Bezerra para este blog, Yoga Pleno, em 16 de junho de 2015. Visite o site do Instituto Hermógenes em institutohermogenes.com.br [↩]
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