Tantra + Vedanta = Hatha Yoga?
Pedro Kupfer (1966-), do yoga.pro.br (1)
Com frequência, estamos acostumados a ver o Vedanta e o Tantra como ensinamentos conflitantes e mutuamente excludentes. O que não paramos para pensar é que essas duas escolas possam ter muito mais em comum do que imaginamos.
Ainda, para além dos pontos em comum que possamos encontrar entre ambas escolas, tampouco imaginamos, desde a nossa perspectiva limitada pelas etiquetas que em tudo colocamos, que alguém possa ter feito uma síntese entre essas duas grandes vias de conhecimento. E, pior ainda para nós, que essa síntese atenda pelo nome de Hatha Yoga!
A Shiva Samhita, um texto seminal do século XVII sobre Hatha Yoga, expõe com muita profundidade a visão não-dualista do Vedanta, combinada com as práticas tântricas. Filosoficamente falando, esse texto é o mais elaborado dos clássicos do Hatha, citando os exemplos e ensinamentos clássicos do Advaita, a filosofia monística ensinada por Shankara em textos como o Tattva Bodha, o Atma Bodha e o Brahma Sutra Bhashya.
O leitor que já tiver familiaridade com o estudo do não dualismo vedantino reconhecerá esses ensinamentos. Notadamente, os exemplos sobre a unidade entre o Ser e a Criação, como o da confusão entre a corda e a serpente, o da confusão entre a prata e a madrepérola ou o do reflexo da Lua em diversos recipientes de água.
Algo que pode parecer chocante para o leitor é a presença, na mesma obra, de práticas e pontos de vista que hoje em dia nos parecem totalmente divorciados, como as práticas sexuais do Tantra e a visão monística do Vedanta. As práticas tântricas que envolvem a sexualidade foram sempre consideradas malditas pelo establishment político e espiritual de todas as épocas.
O Tantra encontrou inimigos não somente no seio do Hinduísmo, do qual sempre fez parte, mas igualmente fora dele. Durante o século XVI, era em que o imperador muçulmano Akbar governou o norte da Índia, praticantes do tantrismo Kaulachara que fossem descobertos eram condenados à morte por esquartejamento: seus corpos eram dilacerados por dois elefantes que puxavam em direções opostas. A crueldade dessas execuções nos dá a pauta sobre o preconceito e a animosidade que reinavam à época em relação às práticas do Tantra.
Essa mesma desconfiança em relação aos ensinamentos tântricos continuou até a colonização inglesa, não mais como perseguição a criminosos, mas na forma de censura e desaprovação. O vajroli mudra, descrito em detalhes nessa obra, faz parte desse corpo da espiritualidade maldita do Kaulachara Tantra.
A bem da verdade, essa aparente divergência nos pontos de vista do Vedanta e do Tantra é mais um produto da desinformação e do preconceito do que algo real. Tanto o Vedanta quanto o Tantra compartilham a visão, presente na espiritualidade da Índia desde os tempos védicos, sobre a unidade entre Consciência e Existência, entre o Ser e a Natureza.
A visão não-dualista, visível nos Vedas, nas Upanishads, nas Samhitas e todo o corpo literário pré-clássico do Hinduísmo (Smrti) a partir do quarto milênio a.C., é sintetizada magistralmente na obra de Shankara, que surge como o grande reformador do Dharma hindu. Essa mesma visão será atualizada mais tarde na literatura do Tantra, a partir do século IX d.C.
À diferença do Vedanta e outras correntes espirituais contemporâneas a ele, o Tantra não abdica nem renega a validade das experiências do corpo como veículo para a transcendência. Nesse sentido, o autor anônimo da Shiva Samhita empreende a corajosa tentativa de integrar, num único método de Yoga, todas as tecnologias práticas e pontos de vista que marcaram a espiritualidade indiana.
» por Com frequência, estamos acostumados a ver o Vedanta e o Tantra como ensinamentos conflitantes e mutuamente excludentes. O que não paramos para pensar é que essas duas escolas possam ter muito mais em comum do que imaginamos.
Ainda, para além dos pontos em comum que possamos encontrar entre ambas escolas, tampouco imaginamos, desde a nossa perspectiva limitada pelas etiquetas que em tudo colocamos, que alguém possa ter feito uma síntese entre essas duas grandes vias de conhecimento. E, pior ainda para nós, que essa síntese atenda pelo nome de Hatha Yoga!
A Shiva Samhita, um texto seminal do século XVII sobre Hatha Yoga, expõe com muita profundidade a visão não-dualista do Vedanta, combinada com as práticas tântricas. Filosoficamente falando, esse texto é o mais elaborado dos clássicos do Hatha, citando os exemplos e ensinamentos clássicos do Advaita, a filosofia monística ensinada por Shankara em textos como o Tattva Bodha, o Atma Bodha e o Brahma Sutra Bhashya.
O leitor que já tiver familiaridade com o estudo do não dualismo vedantino reconhecerá esses ensinamentos. Notadamente, os exemplos sobre a unidade entre o Ser e a Criação, como o da confusão entre a corda e a serpente, o da confusão entre a prata e a madrepérola ou o do reflexo da Lua em diversos recipientes de água.
Algo que pode parecer chocante para o leitor é a presença, na mesma obra, de práticas e pontos de vista que hoje em dia nos parecem totalmente divorciados, como as práticas sexuais do Tantra e a visão monística do Vedanta. As práticas tântricas que envolvem a sexualidade foram sempre consideradas malditas pelo establishment político e espiritual de todas as épocas.
O Tantra encontrou inimigos não somente no seio do Hinduísmo, do qual sempre fez parte, mas igualmente fora dele. Durante o século XVI, era em que o imperador muçulmano Akbar governou o norte da Índia, praticantes do tantrismo Kaulachara que fossem descobertos eram condenados à morte por esquartejamento: seus corpos eram dilacerados por dois elefantes que puxavam em direções opostas. A crueldade dessas execuções nos dá a pauta sobre o preconceito e a animosidade que reinavam à época em relação às práticas do Tantra.
Essa mesma desconfiança em relação aos ensinamentos tântricos continuou até a colonização inglesa, não mais como perseguição a criminosos, mas na forma de censura e desaprovação. O vajroli mudra, descrito em detalhes nessa obra, faz parte desse corpo da espiritualidade maldita do Kaulachara Tantra.
A bem da verdade, essa aparente divergência nos pontos de vista do Vedanta e do Tantra é mais um produto da desinformação e do preconceito do que algo real. Tanto o Vedanta quanto o Tantra compartilham a visão, presente na espiritualidade da Índia desde os tempos védicos, sobre a unidade entre Consciência e Existência, entre o Ser e a Natureza.
A visão não-dualista, visível nos Vedas, nas Upanishads, nas Samhitas e todo o corpo literário pré-clássico do Hinduísmo (Smrti) a partir do quarto milênio a.C., é sintetizada magistralmente na obra de Shankara, que surge como o grande reformador do Dharma hindu. Essa mesma visão será atualizada mais tarde na literatura do Tantra, a partir do século IX d.C.
À diferença do Vedanta e outras correntes espirituais contemporâneas a ele, o Tantra não abdica nem renega a validade das experiências do corpo como veículo para a transcendência. Nesse sentido, o autor anônimo da Shiva Samhita empreende a corajosa tentativa de integrar, num único método de Yoga, todas as tecnologias práticas e pontos de vista que marcaram a espiritualidade indiana.
- Artigo originalmente publicado em 25 de julho de 2005 em yoga.pro.br, o site do Pedro [↩]
Amei o texto e as ótimas explicações. Gratidão!
Que bom que você gostou, Vanessa! E não há de quê, a gratidão é toda nossa a você por esse teu feedback!