O Yoga e o Ser
O Yoga, esse complexo e profundo mapa do ser humano, dá-nos diversos indicativos de como chegarmos à nossa essência, ao Ser. De acordo com os Vedas, o Ser permeia tudo, é criador e criatura ao mesmo tempo. Em nós, indicam os Vedas, esse Ser, ou essa essência universal, reside no coração: “Dentro do coração, em uma pequena cavidade, repousa o Universo.” (Mahanarayana Upanishad).
A primeira pergunta que surge ao refletirmos sobre o Ser é: se essa é a nossa essência, a nossa real natureza, porque não somos, naturalmente, o seu reflexo? Na realidade somos o seu reflexo, mas esquecemos disso. E esquecemos por uma razão básica, a ignorância, ou seja, a nossa identificação, o nosso apego com o ego e com as coisas perecíveis e impermanentes da vida.
Por vezes acho muito curioso e estranho ter um nome: Tales da Costa Lima Nunes. Ser filho de Denise Costa Lima da Rocha e Ricardo Nunes. Ter uma posição dentro de uma família. Existir expectativas sobre quem devo ser, tanto externas quanto internas. Passar o dia conversando comigo mesmo, variando dentro de estados emocionais, agindo movido por eles. Alegrar-me, entristecer-me. Às vezes achar-me o centro do Universo, às vezes o mais esquecido por ele. Achar que poderia ser qualquer outra pessoa, bastasse ter tido eu uma história de vida diferente.
Essa empatia com o outro, e ao mesmo tempo esse estranhamento pessoal e a capacidade de posicionar-se como expectador de si mesmo, indica-nos que somos algo além do que normalmente achamos ser. Percebo, intuitivamente em alguns momentos e racionalmente noutros (quando estudo Vedanta), que, em meio a esses altos e baixos, existe algo que é permanente e tranquilo. Algo que está constantemente a observar-se serenamente, uma consciência constante.
É exatamente a percepção da existência dessa consciência, desse Eu, que fez o poeta espanhol Juan Ramón Jimenez escrever o poema:
Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.
Que permanece em silêncio quando estou falando.
Que perdoa e esquece quando estou irado, esbravejando.
Que segue sereno quando estou aflito, sofrendo.
E que estará de pé quando eu estiver morrendo.
Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.
Dentro ou fora da tradição indiana, indicativos dessa mesma percepção é-nos fornecido. Marco Aurélio, o imperador filósofo romano, deixou-nos as belas palavras: “Volta o olhar para o teu interior. Aí reside a fonte do bem inesgotável, se o buscares sem cessar.”
Em outro belo aforismo, que em muito assemelha-se ao poema de Juan Ramón Jiménez, Marco Aurélio remete a um conhecimento valoroso e passado a ele por Epicuro, filósofo grego: “Lembra-te, perante qualquer dor, de que esse infortúnio não avilta nem torna pior a inteligência que te governa. Com efeito, para a maioria dos desgostos, encontrarás socorro na palavra de Epicuro: ‘Nenhum tormento será duradouro nem intolerável, caso não o aumente a tua imaginação, e se o vires nas dimensões naturais. Considera ainda que muitas coisas te incomodam sem todavia serem sofrimentos.'”
Esses são indicativos de que este conhecimento está presente em todas as culturas ao longo da história da humanidade. No entanto, o que me espanta cada vez mais é a riqueza em quantidade e qualidade e de detalhe dos escritos indianos acerca do conhecimento do Ser, o que faz desse lugar um palco riquíssimo do que podemos chamar de conhecimento de si mesmo.
A Hatha Yoga Pradípika diz-nos que o Yoga é um refúgio para aqueles que sofrem os três tipos de dor: adhyatmika, dor física ou sofrimento psíquico; adhidaivika, sofrimentos provocados por influências planetárias; adhibhautika, aflições produzidas pelos fenômenos naturais. A dor, dizem os textos de Yoga, é inerente ao ser humano. Mas gosto de completar essa afirmação com a idéia de Fernando Pessoa: “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional“. Ou seja, a dor sempre vai existir, mas o sofrimento será tanto maior quanto nos identificarmos com essa dor.
Acredito plenamente, apesar de muitas vezes esquecer, que a natureza é perfeita, é uma sinfonia harmônica. Se a dor é inerente à vida humana, certamente há um antídoto a ela.
Patañjali, com o seu sutra 16 do capítulo II do Yoga Sutra, indica-nos o antídoto com a afirmação de que o sofrimento que ainda não surgiu pode ser evitado. Esse simples aforismo diz-nos muito. Diz-nos que o sofrimento passado não pode ser evitado. O sofrimento passado deixa impressões em nós. Sentimentos que voltam e lembranças que vem e vão. Mas o sofrimento em si, pelo qual passamos anteriormente, nada podemos fazer para apaziguá-lo.
O sofrimento pelo qual estamos passando, temos a possibilidade de apaziguá-lo. Mas, quando mergulhados no sofrimento, é-nos mais difícil de ver a luz. Muitas vezes, sim, uma situação de fragilidade, de sofrimento e a defrontação com a impermanência, na forma de perda de um ente querido, de uma enfermidade, é uma faísca que acende a chama para a busca pelo conhecimento do Ser, que é eterno e imperecível.
No entanto, acredito, o impulso por essa busca de algo maior é inerente ao ser humano, só que geralmente é canalizada para a busca de coisas perecíveis, como dinheiro, fama, bens exteriores. O sofrimento pode, em vários momentos, canalizá-la para o que realmente importa na vida.
Mas, então, como podemos evitar o sofrimento futuro? Compassivamente, para não gerar mais ansiedade em nós, logo no sutra 17, Patañjali indica-nos que a união entre observador e objeto observado é a causa do sofrimento. Portanto, podemos inferir que a saída, a maneira de evitar o sofrimento futuro, é a desidentificação com o objeto observado. Objeto observado aqui pode ser visto como pensamentos, emoções, situações, objetos materiais.
Ainda assim, continuamos desamparados quanto a como proceder para nos desidentificarmos com o que é impermanente e ligarmo-nos ao que é eterno. O Atma Vichara, A Meditação no Ser, de Ramana Maharshi, é um belo exemplo de prática que pode ajudar-nos nesse processo. Por meio da auto-inquirição chegamos ao Ser:
Sou o Ser (que é imaterial, imutável e imperecível).
Quem sou eu, que não sou esta mente que pensa?
Sou o Ser (que é serenidade e paz).
Quem sou eu, que não sou os cinco sentidos?
Sou o Ser (que é silêncio e comunhão).
Quem sou eu, que não sou as emoções?
Sou o Ser (que é ponderação e equilíbrio).
Quem sou eu, que não sou sensações?
Sou o Ser (que é satisfação).
Quem sou eu, que não sou desejo, necessidade, vontade?
Sou o Ser (que é plenitude).
Quem sou eu, que não sou passado, presente e nem futuro?
Sou o Ser (que é atemporal, eterno).
Quem sou eu, que não sou ego, personalidade?
Sou o Ser (que é tudo).
Quem sou eu, que não sou os papéis que represento?
Sou o Ser (que é a verdadeira natureza, a verdadeira identidade).
Quem sou eu, que não sou individualidade?
Sou o Ser (que é uno).
Quem sou eu, que não sou orgulho nem vaidade?
Sou o Ser (que é simplicidade).
Quem sou eu, que não sou insegurança nem medo?
Sou o Ser (que é luz).
É um processo semelhante ao de se chegar ao Sol por meio da Lua cheia. A Lua está lá, plena, cheia, brilhando. E, por trás dela, está o Sol, a iluminá-la. Quando estamos conectados a nossa luz interior, vemo-nos como luas cheias, como pessoas plenas e completas, iluminadas pela luz da consciência. Quando, porém, essa luz é ofuscada pela nossa ignorância existencial, vemo-nos minguado. Mas o Sol está sempre lá, brilhando, independente da maneira como vemos a Lua. Ninguém diz que o Sol perdeu a sua luz apenas porque a Lua está em sua fase nova. Da mesma maneira, independente da maneira como nos vemos, a consciência está sempre lá, brilhando. Nós, porém, de forma ignorante, achamos que não temos ou que não somos luz por vermo-nos momentaneamente de maneira incompleta ou ofuscada.
O Ser é a razão da existência. Ser é, em si mesmo, plenitude, independente de como estamos. A realização disso é a razão de estarmos aqui. Lembrar disso constantemente, eis a questão. Então, deixo, humildemente, dentro da minha compreensão e baseado em muito do que li de mestres que deixaram o seu legado, dicas práticas de como lembrarmos-nos desse conhecimento que causa uma reviravolta na maneira como estamos acostumados a vermo-nos. Um conhecimento que nos centra internamente para, na realidade, descentrar-nos. Ou seja, faz-nos reconhecer como consciência e luz, e, ao mesmo tempo e consequentemente, todos e tudo como essa mesma consciência, esse mesmo todo.
Seguem algumas indicações:
- Reservar momentos diários para a contemplação e para a meditação.
- Em meditação, pensar que a nossa inspiração, em realidade, é a expiração do Universo para dentro de nós, e que nos preenche. E que a nossa expiração, em realidade, é a inspiração do universo, que nos suga o ar e que nos esvazia.
- Manter contato com a natureza. Isso faz-nos lembrar que fazemos parte do todo.
- Ouvir músicas que nos toquem no sentido de reforçar nossa lembrança do conhecimento interior.
- Ler poesias que nos toquem dessa mesma forma.
- Fazer trabalho voluntário, em benefício dos outros.
- Olhar a Lua cheia nascer (algumas pessoas desconhecem que isso acontece uma vez a cada mês).
- Olhar o Sol se pôr (isso é mais fácil, pois a cada dia temos esse espetáculo).
- Olhar as pessoas nos olhos.
- Escolher um objeto pessoal que o remeta a consciência do todo. Mantenha-o próximo aos seus olhos e diariamente reverencie-o como símbolo dessa consciência.
- Observar o que e quem nos faz sentirmos plenos e completos e perceber que essa pessoa ou objeto é apenas um veículo que despertou em nós o que somos em essência.
Depois de escrever isso tudo, desejo que este conhecimento faça parte da minha vida tanto quanto da sua. Desejo que lembremos desse conhecimento constantemente. Que as palavras da Mahanarayana Upanishad ecoem em nossas mentes: “Dentro do coração, em uma pequena cavidade, repousa o Universo.”
E quando assim estivermos, vivendo esse conhecimento apreendido, que as sábias palavras do Atharva Veda façam-se verdadeiras em nossos corações: “A Terra é a minha mãe e eu sou o seu filho”. E, então, que a vejamos assim e a respeitemos assim. Que, como filhos da mesma mãe, vejamo-nos como irmãos. E, como irmãos, que nos ajudemos a crescer mutuamente – pois o crescimento do outro é o nosso próprio crescimento – como contempla a Taittiriya Upanishad:
Om, que estejamos sempre unidos e bem nutridos.
Que estejamos sempre unidos e protegidos.
Que trabalhemos juntos.
Que progridamos juntos.
Que nosso conhecimento seja luminoso e realizador.
Que nunca haja inimizade entre nós.
Que haja paz, paz, paz.
- Artigo originalmente publicado em 26 de novembro de 2007 em yoga.pro.br e também publicado em 17 de agosto de 2009 em vidadeyoga.com.br, o site do Tales. [↩]
Adorei o texto, pois a sensação de plenitude é maravilhosa! Esse texto me conduziu brilhantemente a poder sentir realmente como é maravilhoso esse caminho da descoberta da essência, do Ser que nos acompanha e nos protege o tempo todo. Só precisamos sabiamente entender que somos parte da natureza, somos a natureza, fazemos parte desse Cosmos, somos a Energia Cósmica. Somos Unos e Iluminados.
Que bom que você gostou tanto assim, Marli! Fico realmente muito feliz em saber!