Introdução ao Vedanta
Vedanta é uma tradição de ensinamento que leva cada um a descobrir que já é toda a felicidade que sempre buscou.
O objetivo da vida é a felicidade. É o que todos buscamos. Mas, tentando ser felizes, encontramos sempre este problema que é o conflito. Os conflitos não podem ser evitados, pois o mundo é dual. Nós temos sempre diante de nós várias opções e precisamos fazer nossas escolhas, o que requer muito questionamento.
Em qualquer situação, mesmo nas menores coisas, o conflito está sempre presente. Pela manhã, precisamos decidir se levantamos logo que toca o despertador ou se esperamos um pouco mais (“só mais dez minutinhos”). Ao sair de casa, a mesma coisa, “vou de carro ou vou de ônibus? ou será que vou de táxi? ou será que vou de carona com alguém?”. A pessoa que fica em casa também tem seus problemas: “será que eu faço arroz ou será que eu não faço arroz?”. Constantemente em nossas vidas temos de fazer opções e, ao decidir, ainda corremos o risco de concluir depois: “Não foi a melhor opção. Eu deveria ter escolhido outra coisa”.
A descoberta do Ser Real
Entretanto, só existe conflito porque existe uma capacidade de escolha, que é peculiar ao ser humano. Animais são guiados por instintos, e por isso não têm esse tipo de problema. Na verdade, eles parecem estar todos muito bem, sem problema nenhum. Um animal age sem escolha, guiado por sua natureza, sem questionamento e sem conflito. Um animal nunca pode ser muito diferente do que está programado para ser, mas um ser humano pode escolher, e só por ser capaz de escolher, pode escolher o melhor para si mesmo. Um ser humano pode escolher ser livre, escolhendo descobrir o Ser Real e preencher a sua vida. Esse momento é muito importante na vida de uma pessoa. É nesse momento que, na Gita, Arjuna vira-se para Sri Krsna e pede shreyas. Shreyas é a liberação do sentimento de ser infeliz, limitado, um sofredor. A satisfação através dos sentidos é chamada preyas. É o que nós nos habituamos a buscar nas nossas experiências no mundo. Shreyas é o bem absoluto, a liberação – Moksha. O objetivo do estudo de Vedanta é o conhecimento do ser pleno essencial que já é cada um de nós. Passo a passo, Vedanta vai mostrar a cada um como, em si mesmo, cada um é essa felicidade que nós nos habituamos a buscar no mundo.
Uma bênção
Em todas as áreas da sua vida, um ser humano é abençoado com uma maior sensibilidade do intelecto e da mente e, portanto, com a capacidade de olhar para si mesmo. É o buddhi – o intelecto – que diferencia o ser humano dos outros seres vivos. É uma grande bênção que possamos questionar, analisar e escolher. E, junto com essa capacidade de questionamento, está a autoconsciência. Somos conscientes do mundo ao nosso redor, conscientes de nós mesmos e conscientes das nossas escolhas e dos nossos valores. Porque temos consciência dos nossos valores, podemos optar de acordo com eles. Nós podemos até achar a vaca maravilhosa porque ela é vegetariana, mas ela não fez nenhum questionamento para isso. Ela não estudou para isso. Ela não tem nenhum mérito especial por ser assim. Ela, na verdade, não poderia ser diferente. Um ser humano, entretanto, não segue um “padrão humano”. A cada momento um ser humano pode escolher o que faz, o que come, escolher a melhor forma de viver a sua vida.
Essa mesma mente, que é uma grande benção, pois faz do ser humano um ser especial na criação, também pode fazê-lo miserável, pois existe a dúvida: “mas será que é isso mesmo o melhor para mim?”. É por isso que, debaixo de um grande sofrimento, com dúvidas sobre o que exatamente seria o melhor a fazer numa determinada situação, podemos olhar para algum animal e pensar: “seria muito melhor se eu fosse um cachorrinho como aquele, sem problema nenhum”. Ele não pensa em nada, só está ali, em paz. Em paz como uma vaca na Índia. Veja que expressão ela tem! Andando, satisfeita, lá vai ela. Principalmente na Índia, aonde todo mundo respeita os animais, especialmente as vacas. Se ela resolver tomar conta da calçada, todos vão dar a volta sem atropelá-la. Podemos até olhar para ela e imaginar: “eu seria muito mais feliz se fosse aquela vaca”. Mesmo um outro animal, como uma serpente, por exemplo, nunca pensa: “será que eu devo picar esta pessoa? Será que é correto feri-la?”. Ela é impulsionada pela sua natureza. Age e ponto final. Mesmo tendo picado, é conflito zero. Mas, para o ser humano, é conflito antes e conflito depois. É a dúvida: “será que eu faço, será que eu não faço?”. E tendo feito, eu ainda posso pensar que devia ter feito diferente.
Vedanta analisa as experiências
O estudo de Vedanta vai nos levar a um questionamento dos nossos valores, das nossas atitudes, da nossa visão das realidades da vida. No processo, nós vamos lidar com a mente, entender melhor como ela funciona. Vamos também questionar a nossa relação com este universo e o seu criador – Deus. Vamos lidar com vários temas, mas o tema principal do estudo de Vedanta é a descoberta do Ser pleno, completo e feliz que já é cada um de nós.
Como uma parte do questionamento do “Eu” (Atman), Vedanta analisa os nossos estados de experiência. Isso é muito importante, embora quase ninguém dê importância para isso. Geralmente, nós não consideramos o estado de sono profundo como parte da nossa experiência. Algumas linhas de Psicologia dão valor para os sonhos – principalmente os junguianos – mas de modo geral, só o estado acordado é considerado como realidade. Em Vedanta, entretanto, a análise destes três estados de consciência (i.e. acordado, sonhando e sono profundo) é fundamental. Consideramos o seguinte: quando estou acordado, o real é o estado acordado, mas quando estou sonhando, o real é o sonhando. Tudo no sonho é muito real enquanto ele está acontecendo. Não há interferência do estado acordado com o sonhando; o que é real em um não serve para o outro. Mesmo estando coberto posso sentir frio no sonho e isto será muito real… enquanto durar o sonho. A mais importante é a análise do sono profundo, isso porque no sono profundo eu estou totalmente apagado para o mundo, eu não vejo nada, eu não penso nada e ainda assim eu estou bem! Diariamente nós temos essa experiência de “estar consigo mesmo e estar bem”. Essa análise de sono profundo mostra que é possível essa felicidade – eu comigo mesmo. Quer dizer: se sempre que eu estou comigo mesmo, eu estou bem, eu estou feliz, isso significa que eu sou a felicidade que eu tanto busco. Felicidade é a minha natureza essencial.
Estar bem é estar comigo mesmo
No sono profundo, diariamente, todos nós temos esta experiência: “eu estou comigo mesmo e estou bem“. Isso mostra que a felicidade não é algo que eu vá adquirir de algum objeto. A felicidade não existe fora de nós. A felicidade não é diferente de mim. Eu estou bem sempre que estou comigo mesmo. No sono profundo a mente não está agitada, insatisfeita. Existem desejos no sonho e existem desejos no estado acordado, mas no sono profundo não há nada e, ainda assim, eu estou bem. Ao acordar eu sei que eu dormi bem. Eu estava bem. Logo, o que eu preciso para estar bem, para ser feliz, é estar comigo mesmo.
Os problemas aparecem quando não conseguimos lidar com o mundo como ele é. O mundo não cria problemas; o mundo cria situações que nós podemos interpretar como sendo um problema. O mundo é dualidade. Às vezes está frio, às vezes calor. Às vezes tudo está bem, às vezes as coisas não vão tão bem. É importante sim, ter uma mente tranquila, com a qual se possa lidar – que é o Yoga – mas Vedanta não tem como objetivo trabalhar a mente. Isso tudo é muito útil, inclusive para o estudo, mas não vai resolver o problema básico da vida humana. Disciplinar ou mesmo purificar a mente não soluciona a minha insatisfação. É necessário compreender a natureza da insatisfação e do sofrimento, que é uma visão inadequada, parcial, de mim mesmo.
A minha natureza essencial
Quem eu sou? Quem de fato eu sou? Qual a minha natureza essencial? Quem é esse que no sono profundo, consigo mesmo, está bem? Quem é essa pessoa que nos momentos de tranquilidade, no alto da montanha, olhando para o rio, para o oceano, tendo abandonado todas as preocupações, está bem, em harmonia com o todo? Quem é este, que quando está consigo mesmo, está pleno e feliz? Vedanta nos leva nesse questionamento passo a passo, com o auxílio das escrituras e de um guru, na descoberta desse Ser essencial, que eu descubro nos momentos de felicidade. O “eu” em mim que é o “eu” em cada um. Esse Ser que parece que eu encontro nos momentos de meditação.
Mas eu não preciso encontrar com essa felicidade em alguma esquina, em alguns pequenos momentos da minha vida. Eu sou essa felicidade. “Eu sou esse Ser pleno” é o ensinamento de Vedanta.
Somente conhecendo esse “eu”, que é pleno, livre de toda a limitação, é que eu posso estar bem comigo mesmo, apesar das limitações, pois, independentemente das limitações de cada situação, eu sou livre. As situações podem mudar, mas o Ser, que é testemunha de todas as situações, de toda a dualidade, permanece. Vedanta não quer eliminar os pensamentos e sim reconhecê-los enquanto Consciência. Não é possível eliminar completamente as situações que me trazem um sentimento de limitação e sofrimento, pois essa é a natureza do mundo; mas eu posso ver esse Ser essencial que eu sou independente das modificações. Vedanta é o meio de conhecimento desse “eu” pleno e feliz. Vedanta é um conhecimento encontrado no final dos Vedas, que são um corpo de conhecimento preservado na Índia mas que é de toda a Humanidade, de quem questiona esse Ser essencial. Esse Ser essencial que é cada um de nós. Somente conhecendo esse Ser, que é livre de limitação, eu posso estar bem em qualquer que seja a situação limitada do mundo.
Consciente de mim mesmo, sou também consciente de uma série de limitações. Esse “eu” que eu conheço é limitado. Eu sou consciente de meu corpo físico. Sendo consciente do meu corpo físico, eu também sou consciente das limitações que ele possui. Ele tem grandes capacidades, mas também grandes limitações. A mesma coisa com a minha mente, que analisa, questiona, interpreta, mas tudo dentro das suas próprias limitações. Meu sofrimento se dá porque, autoconsciente, eu me vejo consciente das minhas limitações. E ao me ver como um ser limitado, de várias maneiras limitado, eu sofro. Eu sofro porque me sinto limitado e por isso a minha felicidade também é limitada. Eu me sinto constantemente inadequado. Eu tenho poder de produzir, de alcançar, mas é limitado. Devido a essa capacidade de olhar para si mesmo, o ser humano, muitas vezes, pode não gostar do que vê. Constantemente nos damos conta das nossas limitações e sofremos, pensando em como poderíamos ser mais felizes se conseguíssemos ser diferentes. Essa mesma mente, que é uma grande bênção, também pode ser um grande problema, quando nos dá este sentimento de limitação, e nos faz estar constantemente em conflito. Se eu não estou bem comigo mesmo é porque estou vivendo somente a realidade da mente. O ser do qual eu sou consciente, que eu reconheço, é um ser limitado, por isso saber lidar com esta mente é fundamental.
A solução está não em tentar modificar as situações nas quais eu projeto a minha insatisfação. A solução está em modificar a minha visão de mim mesmo, modificar o ser insatisfeito. Jamais uma pessoa conseguiu verdadeiramente modificar o mundo à sua vontade. Isso porque tantas outras pessoas também querem modificar o mundo e têm padrões diferentes de como esse mundo deveria ser. Então jamais a solução poderia ser modificar o mundo para ajustá-lo à minha vontade. E tem mais: por mais que eu consiga mudar, transformar o mundo a minha volta, no processo de modificar o mundo nossos valores também se modificam, e nos descobrimos desejando outras mudanças. Se eu quero realmente ser feliz, preciso reconhecer que tenho que encontrar essa felicidade em mim mesmo, independente das situações.
Eu sou felicidade
Devido à bênção desse conhecimento é possível lidar bem com todo este universo. Meu intelecto, minha mente e os meus pensamentos estão incluídos nesse universo. Se eu me vejo como o ser pleno que eu realmente sou, em qualquer situação, a plenitude será a minha base, o meu refúgio. Assim, eu posso lidar com qualquer situação! Não preciso concordar com tudo, mas posso aceitar as coisas como são, pois ninguém precisa ser diferente para me satisfazer. Quando eu preciso que as outras pessoas sejam diferentes, que o mundo seja diferente, eu tenho problemas. Isso porque, assim como eu quero que o outro mude, o outro também quer que eu mude. Quando eu estou bem comigo mesmo, posso lidar com qualquer situação, pois o meu copo já está cheio. Meu coração é grande demais, meu coração se torna amplo. Do tamanho do universo. Ele acomoda todo o universo. Eu não preciso concordar com tudo, mas posso entender. Não preciso ser amigo do mundo inteiro, mas posso aceitar as pessoas como são, pois é assim que elas conseguem ser. Eu não preciso modificar o mundo, mas, se alguém quiser mudar, eu posso colaborar. Eu estou bem porque eu sou a felicidade.
- Texto extraído do Jornal Alvorecer, do Rio de Janeiro (sem data), digitado por Cristiano Bezerra (1971-) em 30 de maio de 2002 e desde então também publicado em yoga.pro.br. Visite o site do Vidya Mandir – Centro de Estudos de Vedanta e Sânscrito, da Professora Gloria Arieira (1953-), em vidyamandir.org.br [↩]
Desejo saber ou estudar mais sobre essa cultura.
Olá, André, seja muito bem-vindo! Veja todos os conteúdos sobre Vedanta disponíveis aqui no Blog Yoga Pleno em https://www.yogapleno.com.br/assunto/vedanta