De volta ao básico: Yamas e Niyamas
» por Pedro Kupfer (1966-), do yoga.pro.br (1)
Praticar Yoga sobre um tapete roubado?
Dois amigos, professores de Yoga, tiveram seus tapetinhos de prática roubados dentro de uma escola de Yoga. Quando coisas como essa acontecem, é sinal de que devemos revisar o básico para avaliar o que pode estar dando errado na comunidade do Yoga. Diante dos dramas que o Brasil está testemunhando atualmente, ter seu tapete de prática de Yoga roubado é algo insignificante. No entanto, é um sinal preocupante de que há gente que diz praticar Yoga, mas que não compreendeu o mais fundamental dos princípios da convivência: não fazer aos demais aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. O detalhe: esse princípio áureo é o pontapé inicial das práticas de Yoga.
Surgiram algumas perguntas na minha mente quando esses amigos me contaram a notícia: “como poderia alguém praticar Yoga sobre um tapete roubado? Como o ladrão iria encontrar tranquilidade para meditar sentado sobre o fruto de um roubo? Em caso desse praticante alcançar a iluminação, iria repensar seu gesto e devolver o tapete?” Roubar comida para manter-se vivo é algo totalmente compreensível em momentos de crise. Meu avô Markus, homem honesto como poucos, viu-se obrigado a roubar uma vaca na Áustria para alimentar sua família durante a guerra.
Roubar coisas supérfluas, como um tapete, é mais grave. Isso, feito dentro de uma escola de Yoga, é mais grave ainda! Significa que nós, professores de Yoga, estamos falhando ao não conseguirmos ensinar os valores mais básicos para os praticantes. Significa que talvez não estejamos colocando o devido empenho em transmitir a importância de praticar o Yoga nas pequenas atitudes do cotidiano, o que é bem mais importante que dominar o tal do “bananapásana“. Para isso, cada professor ou praticante deveria fazer da sua vida um exemplo onde os yogis da próxima geração possam se inspirar. Isso pode parecer pretensioso, mas, se você que é consciente não der o exemplo, quem irá fazer isso?
Voltando ao início
Muito embora o tema da compreensão do Yoga seja vasto e profundo como o próprio oceano, nunca é demais lembrarmos o básico. Nesse caso, o básico é o código de conduta do Yoga, pilar central sobre o qual primeiro se constrói a prática e, depois, a vida de Yoga como um todo. Constatamos que, infelizmente, muita gente começa a praticar sem haver sequer ouvido falar que, para que a prática funcione, é necessário aplicar esse código. E, o que é ainda pior, há professores mal preparados que tampouco conhecem esse código, cuja aplicação é absolutamente essencial se quisermos ter uma vida tranquila e equilibrada.
No Yoga Clássico, esse código tem dez partes, distribuídas em dois grupos de cinco preceitos, chamados respectivamente yama e niyama. Existe bastante desinformação a respeito deste decálogo (decálogo, em latim, significa “dez palavras”), que alguns chamam “os Dez Mandamentos do Yoga”. A expressão “Dez Mandamentos” nos remete às tábuas da lei judaica, o conjunto de leis que Deus legou a Moisés no monte Sinai. Diferentemente daqueles mandamentos religiosos, o decálogo do Yoga não pode nem deve ser imposto desde fora ou à força. Ele deve ser compreendido e integrado desde dentro. Sem essa integração, que pressupõe a presença de uma motivação correta para agir em harmonia com esses preceitos, o Yoga não funciona.
Yama, as cinco proscrições
Proscrever é banir. A palavra yama significa “controle“. O yogi quer banir da sua vida cotidiana obstáculos e sentimentos indesejáveis, como a violência, a falta de sossego, a mentira e a cobiça, dentre outras. Viver respeitando os yamas significa livrar-se desses obstáculos, que nos tiram o sossego. Os cinco preceitos são:
1. Ahimsa: significa não-violência. É uma poderosa força que pode ser usada para escolher desde o que comemos nas refeições até o alimento que damos para o nosso coração nos relacionamentos. Ahimsa é evitar vitimizar os demais seres com nossas atitudes.
2. Satya: é dizer somente a verdade e, além disso, fazer coincidir pensamentos, palavras e ações. Ser verdadeiro não é somente dizer a verdade, mas manter a coerência entre o nosso mundo interior e o exterior.
3. Asteya: literalmente, significa não roubar. Não roubar o tempo, as ideias, o mérito ou a paciência dos demais, são formas de asteya que vão bastante além de apoderar-se de objetos alheios.
4. Brahmacharya quer dizer conduta brahmínica. Muitas vezes, esse preceito é traduzido com abstinência sexual. Pessoalmente, prefiro traduzir o termo como fidelidade nos relacionamentos. Ou seja, evitar a conduta galinácea.
5. Aparigraha é contentar-se com o necessário. Nesse sentido, o bom senso deve prevalecer. O yogi não tem interesse em acumular objetos inúteis pelo mesmo motivo que as águias voam carregando apenas o indispensável: para ficarem leves e assim poderem chegar longe.
Esses cinco preceitos têm como objetivo organizar e harmonizar o espaço exterior, no qual acontece a vida do praticante, bem como dar disciplina para os órgãos de ação: as mãos e pés, e os aparelhos fonador, excretor e reprodutor. Os yamas são tão importantes que o sábio Patañjali indica que devem ser seguidos por todos os humanos, independentemente de posição social, vocação ou atividade. Se esses princípios forem seguidos, sem dúvida, haverá harmonia na sociedade.
Niyama, as cinco prescrições
Prescrever é indicar, determinar, recomendar. A palavra niyama quer dizer “abster-se”, deixar de fazer algo, objetivando um bem maior. Essas cinco recomendações de conduta são as seguintes:
1. Shaucha é pureza, mas não apenas no sentido de manter o corpo higienizado por dentro e por fora. Shaucha aponta também para um estado de pureza interior, em sentimentos, pensamentos e gestos.
2. Santosha quer dizer contentamento, capacidade de estar em paz consigo mesmo e com o mundo. Não é resignação, mas a capacidade de adaptar-se e permanecer feliz, sejam quais forem as adversidades que estivermos atravessando.
3. Tapas é esforço sobre si mesmo. Significa ser mais forte que nossas próprias fraquezas, e manter constantemente o foco e a motivação para a auto-superação, em todas as circunstâncias.
4. Svadhyaya significa compreensão de si mesmo. Esse processo de autoconhecimento acontece olhando para os modelos psicológicos expostos em escrituras de Yoga, como o Yoga Sutra, a Bhagavad Gita, a Ashtavakra Gita e outros.
5. Ishvarapranidhana é a entrega dos frutos das ações ao Ser. Isso implica compreender que não temos direito de escolha sobre os frutos das nossas ações, uma vez que eles sempre retornam para nós da maneira justa e adequada, de acordo com a lei do karma.
Os cinco niyamas têm como objetivo organizar a vida interior e as emoções do praticante, bem como disciplinar seus órgãos sensoriais: audição, visão, paladar, tato e olfato. Patañjali afirma que a prática conjunta dos últimos três princípios dessa lista é tão poderosa que é capaz, isoladamente, de produzir o estado de iluminação e atenuar as fontes de aflição existencial.
“OK, entendi. Mas por onde começo?”
“Sopa quente se come pelas beiradas”. Aplicar esses dez princípios ao mesmo tempo pode resultar em “indigestão” ou “queimadura de segundo grau”. Ao invés disso, recomenda-se escolher apenas um deles, que não seja o mais fácil nem o mais difícil, e centrar-se nele durante um período determinado. Convém fazer, para tanto, um voto com início, meio e fim, e observar-se ao longo desse período. A ideia é que, uma vez que tivermos integrado esse preceito, os demais virão sozinhos, da mesma maneira que, quando uma criança puxa seu dedo para chamar a sua atenção, você inteiro se volta em direção a ela.
Com o tempo de prática, você irá reparar que o decálogo yogiko é uma unidade, e compreenderá que cada elemento desse sistema está integrado com todos os demais. Então, se a prática de Yoga de verdade for de seu interesse, pare, reflexione, faça sua escolha e tente viver por um breve período observando o que acontece quando você aplica ou tenta aplicar, por exemplo, um voto de veracidade à suas palavras, gestos e ações. Boas práticas na vida!
Namaste!
- Artigo originalmente publicado em 14 de maio de 2013 em yoga.pro.br, o site do Pedro [↩]
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